A vida é muito curta pra perder tempo com livro chato

A vida é muito curta pra perder tempo com livro chato

Carta de intenções

Desde que me entendo por gente — e há controvérsias sobre isso, pois há quem diga que nunca cheguei lá — enfim, desde que me entendo por gente, me lembro de infernizar a vida dos meus pobres pais em busca de alguma coisa pra ler. A gente saía de férias e, passada a excitação da chegada, lá estava eu entediado a perguntar: “Tem alguma coisa pra ler?”

Sempre tinha. Cresci numa casa de muitos livros. E eu lia tudo. Não só livros, mas quadrinhos, revistas, jornais, caixa de cereais, bulas de remédio, bulas papais e figurinhas de chiclete. Caía na mão, eu lia. Era isso ou horas na frente da TV assistindo “Jornada nas Estrelas”, “Viagem ao Fundo do Mar” e filmes de pirata (sim, eles não foram inventados pelo Johnny Depp, acredite).

Ler sempre foi uma aventura, uma jornada, uma descoberta, uma busca. Muito antes de Jorge Luis Borges apontar as semelhanças entre Simbad e Odisseu (que li muito cedo, em edições para crianças), eu já havia percebido as notáveis coincidências. De certa forma, tudo o que li depois disso foi uma busca pela mesma vertigem proporcionada pela saga dos dois marinheiros.

E é disso que esta coluna vai falar. Da busca de coisas pra ler. Livros, na maioria das vezes. Mas não só. E não vou falar apenas de coisas recém-chegados às livrarias. Não. A ideia aqui é partilhar descobertas e não seguir a agenda de lançamentos. Afinal, não existe livro novo: existe aquele que você leu e aquele que você não leu.

Obras abandonadas pelo meio também serão mencionadas, assim como as que foram absolutamente ignoradas. A vida é muito curta para perder tempo com livro chato.

A coluna é mensal, o que já é um contrassenso no mundo virtual, e é inspirada em Nick Hornby (autor do romance “Alta Fidelidade”), que faz coisa igual na “The Believer”, espécie de Revista Bula editada em São Francisco.

Ah, sim. Uma vez escrevi no Twitter: “Aqueles a quem os deuses querem ridicularizar, primeiro ganham uma coluna”. Espero que eu esteja errado.

Livros lidos

A Coleção ParticularA Vida Modo
de Usar

Georges Perec
Cia das Letras
R$ 38,00
 A Coleção ParticularA Coleção Particular
Georges Perec
Cosac Naify
R$ 45,00
A Arte de Zoar A Arte
de Zoar

Reinaldo
Objetiva
R$ 49,00
A Ovelha Negra e Outras FábulasA Ovelha Negra
e Outras Fábulas

Augusto Monterroso
Tradução de Millôr Fernandes
Cosac Naify
R$ 29,90

Sobre reflexos e distorções

Terminei “A Coleção Particular”, de Georges Perec (CosacNaify), que comecei depois de “A Vida Modo de Usar”, também de Perec (Cia das Letras). São livros já meio antigos. Um foi lançado em 2005, o outro em 2009.

É raro que eu leia seguidamente duas obras de um mesmo escritor. Mas Georges Perec foi uma descoberta, uma revelação, um achado. Um daqueles escritores que você pensa: “Mas como é possível que eu nunca tenha lido esse cara antes?! Oh, a vergonha! Oh, a desonra!”

Oh, o melodrama.

A primeira pista sobre Georges Perec veio de “O Livro dos Livros Perdidos”, de Stuart Kelly (Record, 2007), um compêndio de obras esquecidas, destruídas, abandonadas e incompletas. Kelly fala com fervor de Perec (1936-1982), escritor francês que conseguiu dar sentido épico ao pós-modernismo. Não ria. Borges é pós-moderno. Ítalo Calvino é pós-moderno. Enrique Vila-Matas é pós-moderno.

E que cazzo é pós-moderno?, você pergunta. Eu explico. Pós-moderno é aquele autor que não se inspira no pôr-do-sol, mas sim no pôr-do-sol pintado por um artista medieval. Ele cria sobre criações anteriores. Na arquitetura, por exemplo, o pós-moderno se caracteriza por retomar elementos clássicos (colunas greco-romanas) e incorporá-las a construções modernas (prédios de metal). Quase sempre o resultado é abominável, como o tal prédio de metal e colunas greco-romanas. Mas de vez em quando, raros alinhamentos planetários proporcionam o surgimento de uma obra-prima. É o caso de Georges Perec.

Perec, de certa forma, lembra Borges, pois seu território é o pastiche, o simulacro, os falsos livros, a armação, a fabulação e a mistura de gêneros: contos que se parecem com ensaios de não-ficção e relatos supostamente reais que lembram romances de aventura.

“A Vida Modo de Usar” é a história de um prédio em Paris, de todos seus apartamentos e todos os moradores que ali viveram e morreram. Cada história se desenvolve em um gênero. Ora, um romance de aventura. Ora, uma narrativa policial. Ora, uma novela pequeno-burguesa. Os personagens e situações se entrelaçam num gigantesco quebra-cabeças. O livro é ambicioso, mas divertido, escrito para que o leitor seja um cúmplice e não um estorvo, como geralmente acontece neste tipo de literatura.

A Coleção Particular

No entanto, “A Coleção Particular” é mais indicado para sua iniciação em Georges Perec. O livro é de 2005 e tem menos de 100 páginas. A capa é toda branca. No alto, uma foto P&B mostra homens de turbante sentados ao redor de uma mesa, aparentemente para uma refeição. Talvez eles sejam turcos. Mas também é possível que a cena seja montada e que os homens sejam atores interpretando turcos. Se é que os turbantes são otomanos. Na página de créditos, a foto é atribuída a Augusto César Ferrari, um fotógrafo italiano.

Um fio vermelho corta a capa no sentido vertical, de cima abaixo, e separa o título do nome do autor, que estão ao pé da página. Na quarta capa, ou seja, a capa de trás do volume, há uma outra foto que mostra os mesmos turcos (ou atores) na mesma mesa, mas em outra posição. O fundo é todo preto. Ao pé da página, o crédito da tradução (Ivo Barroso). O projeto gráfico da capa é de Elaine Ramos e retrata, de forma sutil, toda a trama.

O livro é um relato, aparentemente não ficcional, sobre a coleção de arte do cervejeiro alemão Humberto Raffke. Raffke trocou sua terra natal por Pittsburgh, Pensilvânia. Enriqueceu cedo e decidiu se transformar em colecionador de arte, sua grande paixão. Auxiliado por marchands, críticos e especialistas no Velho e Novo Mundo, ele monta uma assombrosa coleção de quadros medievais, renascentistas e modernos.

Muito orgulhoso de seu museu privado, Raffke encomenda ao pintor Heinrich Kürz, americano de origem alemã, que o retrate observando os quadros adquiridos. Kürz cumpre a tarefa com esmero em “A Coleção Particular”, que mostra o cervejeiro olhando as obras mais significativas da coleção.

VIDA

Na verdade, o pintor leva a brincadeira tão a sério, que inclui seu próprio quadro, “A Coleção Particular”, entre as obras que Humberto Raffke contempla. Assim, todos os trabalhos são reproduzidos sucessivamente, como reflexos num espelho, até se transformarem em borrões. Logo, porém, observadores mais atentos percebem que a reprodução de Kürz não é exata, mas está cheia de pequenas distorções. Um jarro de leite no primeiro quadro vira um bule no segundo. Uma praça vazia em Veneza é preenchida por foliões mascarados. Um camelo entra em cena na primeira reprodução, atravessa a segunda e desaparece na terceira.

A comparação entre as cópias de Kürz e as obras originais se transforma em obsessão e, naturalmente, cria um grande interesse em torno da coleção de Raffke. A partir daí, o texto descreve detalhadamente cada obra comprada pelo cervejeiro. O relato, por vezes chato, esconde pistas para um final surpreendente, digno dos melhores romances policiais.

“A Coleção Particular” é um enigma, mas as pistas estão todas lá, desde o início. Se gostar, como espero que goste, vá viver por uns tempos no edifício parisiense de “A Vida Moda de Usar”. Passei lá os últimos três meses. A vizinhança é ótima.

Livro que não comprei e nem vou ler

O Irmão Alemão  — Chico Buarque  (Cia das Letras, 2014)