O país dos indiferentes: bares, praias e cemitérios lotados

O país dos indiferentes: bares, praias e cemitérios lotados

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Se um brasileiro estivesse em coma desde o ano passado e despertasse agora, ao sair às ruas não iria notar muita diferença. Apesar de o país estar agora enfrentando uma pandemia e de haver restrições ao convívio social, os finais de semana se apresentam exatamente da mesma forma que eram na época de normalidade anterior. As cenas de pessoas nas ruas, sem qualquer preocupação com um possível contágio, são extremamente chocantes para quem sabe que, apesar de ter havido uma diminuição nos números de mortes diárias, elas ainda são alarmantes. A explicação para isso pode trazer uma dura constatação: somos realmente muito indiferentes à dor do próximo.

No romance “Viva o Povo Brasileiro”, João Ubaldo Ribeiro retrata o cotidiano de farsas e falsos heróis que o nosso país entronizou ao longo de sua história. Dentre os personagens, chama a atenção o Barão de Pirapuama, um grotesco representante da casta mais abastada da população, que se aproveita do prestígio de sua condição para cometer atrocidades. Perilo Ambrósio, o Barão, estupra, trai, rouba, assassina e, principalmente, mostra-se incapaz de sentir culpa por qualquer desses atos. É simplesmente indiferente.

Não há aqui, é óbvio, nenhuma intenção de afirmar, genericamente, que todas as pessoas que saem às ruas sem pensar no próximo sejam uma versão light do Barão de Pirapuama. Isso seria leviano e não condizente com a realidade. Na verdade, a questão do povo brasileiro que ora enfrenta a implacável pandemia é bastante complexa, e envolve não apenas as vontades pessoais, mas também o comportamento dos políticos que conduzem os rumos da nação. Afinal, são os dirigentes do executivo, nas três esferas da federação, que ditam o ritmo de funcionamento dos serviços neste período emergencial. Ainda sem uma vacina e com a situação econômica complicada, a saída encontrada por eles foi a flexibilização racional, com a reabertura paulatina e planos de acompanhamento das taxas de ocupação de leitos nos hospitais para possíveis avanços e retrocessos. Até aí, tudo certo.

Há que se ter em vista, também, que boa parte da população não pode se dar ao luxo de simplesmente ficar em casa. Cerca de 60 milhões de brasileiros, mais de um quarto da população, recebem o auxílio emergencial do governo. O desemprego está em um patamar de aproximadamente 13%, e muitas famílias dependem do trabalho informal para sobreviver. Ir para a labuta, enfrentando o transporte público e se deslocando constantemente ao longo do dia não é questão de opção; é a dura realidade de muitos. Para essa parcela da população, encarar a aglomeração é questão de sobrevivência.

Contudo, nada justifica o cenário de parques, praias e bares lotados, com pessoas se divertindo sem se precaver com o uso de máscaras ou a manutenção de um mínimo de distanciamento social. O que se vê por todo o país é um completo descaso, por parte desse nicho específico, com a memória dos que se vão diariamente, com a dos mais de 120 mil que já se foram, com os profissionais de saúde que estão na linha de frente dos hospitais — muitos deles também adoecendo e morrendo.

Ao contrário da população que não tem opção, existe uma parcela hedonista fazendo pouco caso do cenário trágico e escolhendo ignorar que são os maiores vetores de contágio. Sua justificativa para fazer isso é a mais torpe possível: “cansados” de ficar em casa, acham por bem esquecer a profilaxia anticontágio, em troca da sensação de viver uma normalidade que não existe mais. Essa ausência de empatia pode ser, quem sabe, explicada por alguma passagem do livro de João Ubaldo.

Sem sombra de dúvida, Perilo Ambrósio, se por aqui estivesse, faria companhia aos que se divertem nas praias, bares e locais públicos. Sem máscara, sem precaução, mas com toda a indiferença de um perfeito psicopata. E viva o povo brasileiro!