1984, de George Orwell: a exploração do homem pelo homem está em sua natureza

1984, de George Orwell: a exploração do homem pelo homem está em sua natureza

Todo mundo fala em George Orwell. Até Harold Bloom, aparentemente o mais antipolítico dos críticos, incluiu Orwell no Apêndice de seu clássico “O Cânone Ocidental”: não descarta que 1984 (lançado em 1949) venha a revelar-se obra canônica. Menos otimista, Otto Maria Carpeaux diz que Orwell não é grande romancista. Faz “literatura de valor reduzido”, e “só se pode esperar que a obra perca, com o tempo, a atualidade para ficar, enfim, esquecida”. Setenta anos depois desse julgamento as pessoas continuam lendo George Orwell com certo fascínio: é o autor que nos adverte para certos perigos da política, sem levar totalmente em consideração o principal para a alta Literatura: o valor estético. Seu texto está no limbo: é abaixo da média para figurá-lo entre os maiores escritores e bom demais para o considerarmos simples “panfleto” (até porque não defende nada: sua atitude política é de oposição). 

“1984” é a história de um homem comum, Winston Smith, que decide conspirar contra um regime totalitário, sob o qual vive, mas é capturado, torturado e devolvido à vida social, após uma lavagem cerebral. Além de Winston outros três personagens importantes se manifestam: sua namorada Júlia, o livreiro sr. Charrington e O’brien, um aparente conspirador infiltrado no cerne sistema, a quem o casal se alia. Outros dois personagens aparecem ostensivamente, mas não têm existência física: o Grande Irmão, líder do regime, e Emmanuel Goldstein, líder da conspiração conhecida como Fraternidade. Sendo tudo tão vigiado, achamos que o sr. Charrington é a famosa “ponta solta” da história, pois soa inexplicável haver um nicho de liberdade como seu depósito de livros, onde Winston e Júlia costumam se encontrar “às escondidas”. Até que no capítulo 17 o homem se revela: é um agente da Polícia do Pensamento, órgão de repressão do “Partido”. Inadvertidamente, Winston e Júlia se ferram. Em seguida O’brien também se desmascara: é apenas um sádico que durante sete anos vigiara nosso herói e finalmente vai puni-lo com sessões de tortura física e psicológica, a fim de “curá-lo” de sua “loucura”. O’brien converte a mente de Winston, porém seus sentimentos estão além do alcance do opressor.

1984 (1949), George Orwell
1984, de George Orwell

Essa história sinistra se passa num lugar chamado Oceania, um dos três superestados mundiais, ao lado de Eurásia e Lestásia, envolvidas numa guerra sem fim: bombas fazem parte do cotidiano como a luz do sol. Winston Smith trabalha no Ministério da Verdade, e por ironia sua função é produzir mentiras. Mais do que ninguém ele sabe que seu mundo é uma farsa: Oceania é onde acreditam que 2 + 2 são 5 e a Terra é plana. Não importam (vejam só!) as evidências. Reescrever a História é uma demanda permanente, da qual Winston é encarregado cotidianamente. O passado deve servir ao presente: nunca essa máxima (perigosa!) é tão aplicável quanto para os regimes totalitários. Tudo o que se conhece em matéria de registros é a versão oficial, reeditada a cada 24 horas! Os “fatos” coincidem necessariamente com a vontade do Grande Irmão, que é “infalível”.

O engenhoso é que essa contradição, sendo inevitável — visto que os burocratas têm consciência de que adequam os acontecimentos à ficção oficial —, culmina numa técnica que torna a contradição não só necessária quanto (para usar um termo novo) deletável: o chamado “duplipensar”. Ou seja: sabe-se que é uma mentira, mas jamais houve outra narrativa para provar que não seja verdade. Isto porque as publicações de qualquer época só podem reafirmar o presente. Todos os originais que o divergem são incinerados. E é melhor esquecer disso do que contestar — e o erro de Winston é contestar.

A estrutura geral da sociedade oceânica é apresentada no capítulo 17, em forma de ensaio. O modelo é hierárquico, com certos privilégios. Quatro são os níveis: acima de todos está o Grande Irmão; no meio, o Partido Interno (oligarquia baseada no modelo católico) e o Partido Externo; finalmente, os “proles”, na base. Os proles são sombras humanas vigiadas o tempo todo pela “teletela”, ao som de marchas militares e outras bizarrices que arregimentam e preservam a disciplina (Burrhus Frederic Skinner, o psicólogo mais destacado do behaviorismo, talvez enxergasse aqui as consequências mais nefastas do condicionamento humano). Oceania é um mundo horroroso, próximo de um pesadelo, onde não existe a mínima liberdade: trabalha-se 18 horas por dia, veste-se trapos e alimenta-se de uma ração pobre e escassa. Qualquer desvio de doutrinação é tratado como “crimideia” e torna-se alvo da Polícia do Pensamento. O resultado pode ser a tortura, trabalho forçado ou a pena de morte.

Já no segundo parágrafo o Grande Irmão é apresentado como um “homem de bigode espesso”, em clara referência a Joseph Stálin, o líder soviético contemporâneo do escritor.

George Orwell

A inspiração de Orwell é evidentemente o Comunismo, que está no auge nos anos 40 do século 20. Oceania não tem capital, mas os prédios do governo (autênticas fortalezas) localizam-se em Londres, centro da narrativa. Parece haver uma lógica teórica nisso: Marx acreditava que a revolução proletária devia ocorrer num país industrializado da Europa, precisamente Inglaterra ou Alemanha, e jamais num país feudal como a Rússia czarista (aventura que mais tarde forçaria o governo de Lênin a fazer concessões capitalistas, com a famosa NEP, Nova Política Econômica, entre 1921 e 1922). Marx tinha razão! Mas só “parece” haver lógica nisso porque, apesar de a Inglaterra — pioneira da revolução industrial, constituindo sindicatos e um operariado expressivo — estar no epicentro da trama orwelliana, não se pode dizer que George Orwell corrigiu a História. Pois não é dito em lugar nenhum da obra que Oceania resultou da revolução proletária, nem que o regime, em “1984”, é de esquerda. Winston aliás acredita que está nas mãos dos proles destruir o regime, apesar de reconhecer a passividade da massa com uma lucidez que irritaria os marxistas mais ortodoxos: “entregues a si mesmos, continuarão, de geração em geração e de século a século, trabalhando, procriando e morrendo, não apenas sem qualquer impulso de rebeldia, como se capacidade de descobrir que o mundo poderia ser diferente do que é”. Winston vagamente acredita no heroísmo da ralé, mas Orwell não.

A “consciência de classe” é o maior drama do Materialismo Histórico, pois tem a ambição de fazer com que o homem comum seja o senhor de seu próprio destino. Não existe um único caso concreto, na história.

É fato, pelo menos até hoje, que o poder nunca foi além de uma oligarquia de “intelectuais orgânicos”, para utilizarmos o principal conceito de Antonio Gramsci. Foi assim nas três grandes revoluções modernas: a Americana, a Francesa e, inclusive, a Russa, de inspiração marxista. A partilha total do poder não é concebível nem mesmo (ou muito menos!) nas sociedades democráticas à la John Stuart Mill. Baseadas na “representação”, temem que a maioria vulgar e ignorante se imponha aos pretensos cidadãos esclarecidos. (cf: Norberto Bobbio, “Liberalismo e Democracia”) Em “1984” a oligarquia traduz-se no “Partido”, a temível organização à qual todos devem obediência cega. No mundo real essa organização fictícia, chamada INGSOC, foi baseada no Partido Trabalhista Britânico: uma extensão da Internacional Comunista na ilha do então Rei Jorge VI (antecessor de Elizabeth). O detalhe é que a Oceania fora absorvida não pela União Soviética (que domina a Eurásia) e sim pelos Estados Unidos, que em “1984” também constitui um regime totalitário.

Era um temor da geração de Orwel que, de fato, as forças extremistas conseguissem se impor ao chamado “mundo livre”, apesar de a Segunda Guerra já ter terminado, com a vitória dos Aliados. Bem, a Alemanha fora derrotada, enquanto a União Soviética consolidou seu poder e o Comunismo apenas recrudesceu.

Os 70 anos que transcorreram desde a publicação de “1984” parecem pouco tempo para a avaliação canônica, em Literatura. E nesse caso “parece” porque a noção de tempo muda com o avanço tecnológico (cinco anos, hoje, indiscutivelmente é muito). Seja como for, quem disse que “1984” perderá, justamente, “atualidade”? Só poderíamos afirmar isso se tivéssemos certeza de que o totalitarismo ficou no passado, como na época em que George Orwell viveu. Permanentemente instável, porém, a história é feita de fluxos e refluxos, e o pior da natureza humana é sempre mais factível do que gostaríamos que fosse. Como foi dito, Orwell inspirou-se sobretudo no Comunismo, que apenas na versão stalinista é um fenômeno datado. Pois o método político totalitário, latu sensu, não: é parte da índole de muitos líderes e tão latente quanto o risco de uma nova Guerra Nuclear. O risco não adviria apenas de um “monstro vermelho”, visto que, à esquerda ou à direita, o impulso totalitário sempre atraiu adeptos. Sua característica comum, em ambos os lados, é o extremismo.

George Orwell é um escritor menor, e essa constatação talvez nunca mude. É por causa do assunto que “1984” permanece de pé. O totalitarismo pode até não ser atual, porém enquanto houver história, luta de classes, Estado, o risco de haver totalitarismo pairará sobre nós como uma nuvem carregada, no horizonte. Enfim, enquanto existir a espécie humana — se é que num futuro não muito distante nossa liberdade não será ameaçada pelas máquinas que estamos criando. Orwell a propósito tem paralelos, entre escritores maiores (o Ian McEwan de “Máquinas Como Eu” é o exemplo mais atual), de tentativas, senão de profetizar o futuro, ao menos de imaginá-lo como seria diante de certos eventos que merecem nosso cuidado. Ocorre que talvez o que mais interessa a Orwell não seja a fidelidade a um prognóstico.

Pois livros como “1984” nos levam a pensar que é uma ilusão a crença eventual (certamente a crença dos iluministas e progressistas) de que a finalidade da história foi algum dia a elevação do homem de seu estado bestial para o estado de aprimoramento permanente, até a plena liberdade. Leva-nos a pensar, “1984”, que forças ocultas podem nos impor a qualquer momento concepções sombrias de organização social, com objetivos baseados no egoísmo e na paranoia de oligarquias obscuras. A humanidade não é formada apenas por pessoas que partilham a compaixão. É formada também por sádicos, psicopatas e, principalmente, “pessoas normais”, como os burocratas que administravam os campos de concentração nazistas; pessoas dispostas a causar o máximo de dor e sofrimento em seus semelhantes. Isso, infelizmente, não é ficção. A tortura não existe necessariamente por causa de motivações externas como a ideologia algo berkeleyana do torturador O’brien. Existe sobretudo porque tais pessoas também existem de fato (e sua maldade é um mistério).

Dito isso, devemos admitir que o amor ao próximo é uma noção que apenas uma parcela de nós reconhece, mas não todos — e eventualmente pode não ser reconhecida pelos mais poderosos, em sua insaciabilidade de poder. A muitos líderes políticos e corporativistas profissionais pouco custaria escravizar o resto de nós, a fim de perpetuar interesses de grupos hegemônicos, de que o INGSOC é uma metáfora distópica.

É uma contradição que a mentalidade capitalista ache natural que alguns seres humanos “nascem para mandar e outros para servir”, uma vez que o Capitalismo, baseado na concorrência, facultou a mobilidade social, ao contrário dos primitivos sistemas de castas. A exploração do homem pelo homem está em seu DNA, e ele mais do que a Igreja Católica aprimorou a propaganda, dirigindo nossas mentes ao seu bel prazer, a fim de sustentar um consumismo desenfreado. Em parte, isso compromete nossa certeza de liberdade, que certamente é um tanto ilusória mesmo sob o chamado regime “liberal-democrata”. Seja como for, somos livres para ir onde quisermos e falar o que pensamos, desde que não atentemos contra os fundamentos constitucionais, que são a base de nossa civilização. Orwell está falando de coisa pior do que o Capitalismo; está falando de algo transcendente, quando nossa humanidade é aniquilada em nome de qualquer hipostasia que favoreça partidos, líderes, religiões etc. Embriões do fenômeno manifestam-se por toda a parte.

A Coréia do Norte — certamente o regime real mais parecido com o de “1984” — é um indício de que basta a oportunidade para que alguma espécie de loucura política se imponha à razão, valendo-se do terror. Mas a Coréia do Norte é também um mundo pequeno e isolado, provando que a profecia política de Orwell não se cumpriu: não ao menos em abrangência e no tempo previstos…

Acontece que “1984” não é um prognóstico que não se cumpriu, e por isso seria mesmo datado, conforme a expectativa de Carpeaux. É uma advertência, razão pela qual não perde atualidade.

Nossa vigilância deve ser permanente!