Ser indiferente a o que está acontecendo não deixa de ser uma forma de cumplicidade

Ser indiferente a o que está acontecendo não deixa de ser uma forma de cumplicidade

Uma cena típica de um mundo ainda contaminado pela cólera do racismo: um homem negro é morto após uma abordagem da polícia norte-americana. A barbárie desencadeou uma reação popular: era mais um homem negro, o alvo de sempre, vítima da força bruta do Estado. Após a viralização do vídeo do acontecimento, uma onda de protestos tomou as ruas dos Estados Unidos e a revolta atingiu um nível global. Enquanto isso, no Brasil, os dias são marcados por manifestações antidemocráticas e, pior, com a participação do presidente.

Como se não fosse suficiente o planeta estar passando por uma crise histórica, a tragédia americana estarreceu a humanidade. A crueldade do acontecimento é ressaltada ainda mais pelas suas circunstâncias banais. George Floyd, o homem assassinado, teria supostamente falsificado uma nota de 20 dólares em um pequeno mercado. A violência estatal contra cidadãos não é justificada por nenhum motivo. Mas quando essa causa é torpe e racista, não há como ser indiferente ou impassível. E, sim, a causa é racial. Um ciclo de ódio que parece não ter fim.

Logo o caso tomou proporções mundiais. Manifestantes, não só nos Estados Unidos, foram às ruas exigindo justiça e, mais do que isso, clamando por humanidade. As vidas negras importam e essas brutalidades já não podem se repetir no atual estágio da sociedade. E a fúria popular, carregada de inconformismo, trouxe consigo excessos pontuais que, pelo contexto, são mais compreensíveis do que recrimináveis. São séculos de opressão estatal perante um povo. Ser indiferente a recorrente política assassina não deixa de ser uma forma de cumplicidade.

O Brasil, a despeito disso, parece estar em um multiverso desconexo. Populares saem às ruas com suas bandeiras e camisas verde-amarelas para exaltar uma figura como herói e recriminar todas as instituições que estejam a arranhar essa imagem mitificada. Esse contraponto, com pessoas aglomeradas, munidas de negacionismos e síndrome de perseguições, conta com a participação eloquente do próprio presidente, que surge sempre orgulhoso de seus adeptos cegos. Nenhuma palavra sobre mortes da pandemia. Nenhuma palavra sobre Floyd. E muitas faixas exigindo a volta da ditadura.

O direito de reunião é constitucional, desde que pacífico e sem fins ilícitos. Porém, o que ocorre no país, muito além de ser o retrato inenarrável da falta de empatia do brasileiro, é um deboche com todo o mal que devasta nossos tempos: a pandemia, a democracia, a vida alheia, a vida negra. O mundo chora e sai às ruas pela dignidade do outro. O Brasil assiste populares endeusarem um messias e serem indiferentes a tudo em sua volta. As últimas palavras de George Floyd são bastante pertinentes com essa nossa realidade: não conseguimos mais respirar. Somos uma sociedade morta.