A era dos likes e a compulsão que atinge cegamente os egos inflados

A era dos likes e a compulsão que atinge cegamente os egos inflados

As redes sociais exibem a felicidade das pessoas e expõem seus momentos mais íntimos ao público em geral. Essa publicidade gera likes, seguidores, compartilhamentos e até mesmo uma boa renda, transformando pessoas comuns em celebridades, apenas por serem capazes de criar postagens que agradam a seu público. É assim que surge, seguido por inúmeros usuários, o lifestyle influencer, nova profissão das mais desejadas na atualidade. Por outro lado, daí também pode advir uma compulsão prejudicial à própria saúde dos influenciadores, em razão de um mal que assola quem vive do status nas redes: o julgamento dos haters.

Se é que alguém ainda não sabe, existe um lado sombrio nos comentaristas e seguidores das redes sociais, os chamados haters — pessoas que vivem de fustigar com comentários ácidos e desnecessários a quem pouco ou nada conhecem (principalmente celebridades). Obviamente, no Brasil, há quem surfe nessa onda, com programas inteiros dedicados a vasculhar a vida privada de pessoas famosas em seus afazeres mais particulares e desimportantes. A futilidade gera a curiosidade e desperta no hater a vontade de agir com extrema impropriedade: por acreditar-se próximo do seguido, desenvolve a errônea noção de poder criticá-lo da forma que bem entender. Surge o calabouço das verdades escatológicas. Não é difícil imaginar o resultado dessa fórmula.

Uma das coisas mais intrigantes da internet é o fenômeno que se pode chamar de justiçamento unilateral, que é uma das variações desse lado obscuro. Em resumo: ocorre uma determinada situação negativa, com uma pessoa qualquer, seja ela famosa ou desconhecida, em uma determinada circunstância. Há o relato da versão dos fatos na rede social — por vezes, dando nome completo e local onde o suposto culpado reside — com um quê de dramaticidade novelesca; então, um sem número de pessoas compartilha o “fato”, não sem antes crucificar a pessoa, que muitas vezes nem sabe o que houve. Está formado o maior tribunal de exceção existente.

Não é o caso de se negar que muitas dessas histórias sejam verídicas. Contudo, é temerária a forma como ocorre essa exposição, com pré-julgamentos ácidos que em muito remetem ao período da Santa Inquisição. Como num piscar de olhos, a vida da pessoa acusada, o suposto ofensor, sofre uma reviravolta e irremediavelmente se inicia um inferno em seu dia a dia. É uma flecha lançada sem retorno possível. Estará lá seu nome na lista de procurados dos justiceiros da internet, rotulados como as obras no “Index Librorum Prohibitorum”. O sentimento de indignação e a sensibilidade são indiretamente formadores de haters em efeito dominó.

Há que se ter noção de que tudo é relativo em uma vivência tão complexa quanto a das sociedades humanas. Há histórias e estórias, fazendo com que uma verdade seja um mero recorte de uma situação relatada por apenas um dos envolvidos. As aparências, não poucas vezes, enganam e, infelizmente, esse tipo interação está em voga nos mais diversos canais de comunicação. Quantas empresas já terão sido extorquidas para não ter seu nome envolvido em acusações feitas por influenciadores digitais?

Absolutamente ninguém está livre do tribunal da internet. Basta estar em alguma rede social e com um mínimo de seguidores. De juízes da magreza a analistas das ações alheias, o grande júri virtual é uma plataforma cruel para quem vive da aparência. Basta uma olhada superficial nos comentários de fotos de artistas ou celebridades contemporâneas para se deparar com uma verdadeira deep web, que vai dos pedidos para seguir de volta às ofensas gratuitas.

Essa situação é muitas vezes agravada pelas próprias vítimas que, sedentas de atenção e seguidores, acabam por filmar praticamente todo o seu dia. É uma compulsão quase sem volta pelo olhar alheio. Nessa toada, a má utilização e o excesso causam um real vício prejudicial à pessoa, atraindo admiradores, mas também “odiadores” contumazes. E daí começa a grande dor de cabeça de quem mergulha no mundo da influência digital: conviver com haters é o pior dos retornos, e não há compensação financeira que reconstrua um ego demolido por um simples xingamento.

Diferentemente do julgamento formal, no mundo cibernético não há devido processo, contraditório ou promotor natural. Os princípios são os da crença em um enredo contado e o da condenação sumária. Compartilhar a vida em troca de seguidores é um preço elevado para quem não sabe lidar com a crucificação. Os haters costumam ser implacáveis com a autoestima alheia.

Ilustração: John Holcroft