As palavras e a fraude ou o malabarismo ideológico

As palavras e a fraude ou o malabarismo ideológico

Os americanos não se acham estaduninenses e têm bons motivos para isso: não o são mesmo. Quem tem um grau elementar de informação ou já esteve por lá (nem que tenha sido na Disney) sabe que estaduninense é uma invenção da esquerda latina, que, mal informada, nunca soube que logo ali juntinho há um país chamado Estados Unidos Mexicanos. A esquerda europeia incorporou alegremente a novidade e comete o erro sempre que “podemos”. Se fossem mais sérias e rigorosas, chamariam os mexicanos de estaduninenses do sul da América do Norte e os americanos de estaduninenses do norte da América do Norte. Ainda farão isto um dia, se dermos crédito ao retrospecto de equívocos cometidos por essas turminhas nas últimas décadas.

Ah, a nossa esquerda autoritária… A linguagem é ótima para desmascarar os vícios e a hipocrisia dos que se alinham a esta corrente tantas vezes fascistoide em atos e palavras (lembram-se da recepção à blogueira cubana Yaoni Sánchez em 2013?). A tese é de Jorge Semprun, político, escritor e roteirista franco-espanhol, que a desenvolveu com maestria no romance “Netchaiev Está de Volta” (Netchaiev Est de Retour), publicado em 1988. Semprun afirma que os partidos da esquerda autoritária, autointitulados de vanguarda ou revolucionários, ao perderem paulatinamente o contato com as massas que dizem representar, deixam de falar a mesma linguagem que elas. O princípio da ruptura se dá exatamente através da linguagem. A humanidade sabe, e não é de hoje, que as pessoas se comunicam com dificuldade quando não falam a mesma língua. Na verdade, a História prova que elas têm uma tendência enorme a começar a brigar e a guerrear por causa disto.

Os representantes e expoentes desta esquerda medieval não respeitam as pessoas comuns, os seres humanos, a humanidade real, e sim as teorias que dizem saber o que deve ser feito para o bem delas. Enxergam números, massas e multidões em seus delírios messiânicos, jamais o vizinho ou o morador do outro lado da rua. Nunca alguém do círculo íntimo ou familiar. Ninguém de carne e osso. O que interessa a eles é o povo, este ente de sete cabeças e quatrocentos chifres que sonham em estreitar nos braços e às vezes punir, claro. Ela não pode esquecer a herança baseada nos ensinamentos e fuzilamentos promovidos por Stálin, Mao, Pol Pot e Guevara.

Mario Vargas Llosa, a quem ela agride por não ter instrumental para se contrapor intelectualmente, escreveu certa vez que a fidelidade às ideologias, e não às pessoas, é uma das provas do desprezo que os comunistas sentem pelo mundo real. Preferem os seus modelos teóricos, religiosos na essência e que, aliás, faliram ruidosamente em todos os lugares em que foram experimentados, da ex-União Soviética à Venezuela. Talvez por coincidência, quanto mais faliram, mais reprimiram.

Voltando à questão estaduninense, acrescento à lista o termo norte-americano e passo a palavra para o professor, tradutor e jornalista Marcos de Castro (ex-Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, O Globo, Rede Globo, Manchete, Realidade e O Dia): “Pergunte a um americano sobre sua nacionalidade. A resposta será sempre: ‘I am an American’, jamais ele dirá ‘I am a north-american’. Terá toda a razão. Porque o nome do país dele é América. Não há cidadão norte-americano: há cidadão americano. Não há ‘governo norte-americano’. Verifique. Você só vai encontrar ‘american government’. Não há Congresso norte-americano, apenas ‘american Congress’. (…) Nenhum sentimento de altivez se quebra por usarmos as palavras corretas. O nome do país é América, o gentílico é americano. Norte-americano — devemos insistir — é uma referência continental, inclui mexicanos e canadenses. (…) Se norte-americano é um gentílico, pois muita gente usa a expressão como referência a um país — os Estados Unidos da América —, então o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta, na sigla em inglês) seria um tratado entre os Estados Unidos e os Estados Unidos. Mas não é bem assim. O Nafta, criado em janeiro de 1994, reúne o Canadá, os Estados Unidos e o México, porque norte-americanos, como não ignoram os que estudaram geografia política no ensino médio, e os que deram nome ao tratado, são o Canadá, os Estados Unidos e o México, ou os canadenses, os americanos e os mexicanos. Norte-americano, portanto, é uma referência continental. Não é, e não pode ser, o gentílico de um país. (…) A expressão Estados Unidos apenas define que tipo de país se trata: uma república federativa formada através da união de um certo número de estados. A esses estados, unidos, deu-se o nome de América.”

As sábias palavras de Marcos de Castro encontram-se em seu livro “A Imprensa e o Caos na Ortografia” (Editora Record, 1999). Com elas, encerro, mas antes relembro aos desmemoriados que o nosso sofrido rincão já se chamou Estados Unidos do Brasil por um bom tempo (de 1891 a 1967) e nenhum gênio da raça teve a ousadia de nos chamar de estadunidenses por causa disso. Talvez uma ou outra anta diplomada nas artes do non-sense, mas eram insignificantes, numericamente. Hoje, elas são autênticas legiões divulgando ignorância e desconhecimento no faroeste permanente da internet. O problema mais grave da ideologia radicalizada é este: emburrece as pessoas e ao mesmo tempo as convence de que merecem o prêmio Nobel.

Se os esquerdistas radicais forem às ruas das cidades americanas e perguntarem às pessoas se o gentílico delas é estadunidense ou norte-americano, receberão em resposta, no caso de alguém se dignar a fazer isto, a clássica pergunta “What the fuck?” Ou seja, estão sendo americanas, só isso. É aconselhável não insistir.