As cinco pistas do gênio

Um dos grandes mistérios da arte é o que diz respeito à capacidade de certos autores de escrever tão bem, ao contrário de outros. Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa pertencem, seguramente, àquela categoria relativamente reduzida de ficcionistas e poetas que com seus textos encantam milhares de leitores, geração após geração. É mesmo encantamento, ao pé da letra.
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Até existe um cânone universalmente admitido de uns poucos — contam-se poucas dezenas — que estão ainda acima de nomes como Machado de Assis, o gênio nacional do certame, no Brasil. Neste panteão sagrado, eleito pelo tempo, entram apenas figuras da iminência de Cervantes e Homero, Camões e Goethe, Dante e Shakespeare: o ápice da hierarquia criativa, em matéria de literatura.

Seria possível descobrir a razão dessa primazia de uns sobre outros, dos titãs sobre nós, reles mortais? Harold Bloom, professor de literatura da Universidade de Yale, Estados Unidos, estuda o assunto há décadas e já publicou vários livros dedicados a investigar essas personalidades tão ímpares. Em um deles, “Gênio” (2002), Bloom elenca 100 autores, interessado num aspecto particular da literatura: a autoria, portanto o “eu”, a personalidade, a consciência ou simplesmente o gênio, por trás dos livros de ficção. O que é que cada um desses escritores possui, que excede o senso comum?

Em “O Cânone Ocidental” (1994), Bloom tenta desvendar o fenômeno propondo cinco características. Diz: “A gente só entra no cânone pela força poética, que se constitui basicamente de uma amálgama: domínio da linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento, dicção exuberante”. Se o resultado desta amálgama sobre o leitor é magia, os mecanismos que a produzem não são necessariamente irracionais, conforme podemos inferir a seguir.

Se Bloom estiver certo, tais mecanismos (ou fórmulas) não tornam ninguém escritor. Ainda será necessário talento, isto é, que a capacidade de escrever seja um dom natural, ou pelo menos uma predisposição íntima de cada um. Em todo caso, a relação seria um guia racional de como se chegar lá — ou melhor: para explicar como certos escritores tornaram-se imortais, e certos contemporâneos candidatos a viver para sempre. Bloom discorre sobre cada uma daquelas características ao longo de “O Cânone Ocidental“, fragmentariamente. Podemos, no entanto, deduzir seu significado lógico esmiuçando-as uma a uma.

E, neste caso, permito-me a colocá-las numa ordem progressiva, segundo o grau de dificuldade: da mais fácil à mais difícil (ou pior ainda: exclusiva, inata).

Suor é um dos ingredientes indispensáveis à reação química que produz o gênio? Sim, mas, segundo a natureza dos demais, não é determinante, já que uma das características do gênio é justamente a espontaneidade, pelo menos aparente, da criação. Em larga medida, este algo inefável chamado “inspiração” é exigido, e apenas uns poucos artistas conseguem conciliar inspiração (processo desencadeador) com as técnicas necessárias ao apuro formal (o trabalho de ourivesaria da escrita). Alguém que, portanto, manifesta apenas uma dessas características não poderia se tornar um grande escritor. É preciso conjugá-las ao máximo. Uns têm conhecimento, mas não têm poder cognitivo (é um mero erudito); outros têm poder cognitivo, mas não têm domínio das figuras de linguagem (é psicólogo, mas não escritor). Outros conhecem os tropos, mas não sabem como manipulá-los (neste caso teríamos um simples acadêmico, mas não um poeta). E assim por diante.

Algo diferente só começa a germinar quando há um processo de conjugação entre essas características numa mesma personalidade. Uma delas pode gerar apenas um escritor medíocre; duas um escritor ruim; três, possivelmente um bom escritor. Teoricamente, o gênio é a soma de todas.