Gregory Hoblit estreia no cinema com um filme que recupera a cadência dos thrillers clássicos. Em “As Duas Faces de um Crime”, o centro narrativo é Martin Vail, advogado de defesa interpretado por Richard Gere. Vaidoso, midiático e autoconfiante, Vail aceita defender um jovem acusado de assassinar o arcebispo Rushman. A decisão parece vir de um impulso estratégico, talvez oportunista. O caso tem apelo público, e Vail sabe usar isso a seu favor.
Aos poucos, a narrativa revela que o que está em julgamento não é apenas o acusado, mas também o próprio sistema jurídico. O tribunal é representado como um palco, onde o carisma, a retórica e os interesses pesam mais do que os fatos. O roteiro, assinado por Ann Biderman e Steve Shagan, estrutura-se como um jogo de versões que se sobrepõem e colapsam. A verdade é adiada a cada cena, substituída por depoimentos, alegações e evidências parciais. Nada se sustenta por muito tempo. Nem mesmo as emoções dos personagens.
Richard Gere entrega uma das performances mais equilibradas de sua carreira. Seu Vail é sofisticado, articulado, mas guarda uma camada de cansaço estratégico. Gere interpreta alguém que já não espera ser surpreendido, e essa postura confere credibilidade ao papel. Mas o destaque do elenco é Edward Norton. Em sua estreia no cinema, Norton cria um Aaron Stampler dúbio, hesitante e complexo. O personagem parece frágil, mas essa fragilidade é uma camada deliberada. A cada nova cena, Stampler se redefine. Norton incorpora essas mudanças com precisão rara, alternando submissão e controle com naturalidade.
A promotora Janet Venable, vivida por Laura Linney, acrescenta tensão dramática à narrativa. Ex-assistente e ex-amante de Vail, ela surge como uma personagem que equilibra frieza profissional e ressentimento pessoal. Sua presença reestrutura o equilíbrio entre acusação e defesa. Frances McDormand, em papel menor como neuropsicóloga, também contribui para a densidade dramática do filme, mesmo em tempo de tela limitado.
O roteiro faz uso constante de reviravoltas. Há um movimento contínuo de construção e desestabilização. Quando o espectador acredita estar próximo de uma resposta, surge uma nova informação ou um desvio narrativo. Hoblit conduz esse processo com segurança, sem apelar para exageros visuais. A direção é contida, mas funcional. O foco está no diálogo, na tensão contida e nas nuances de comportamento. A linguagem visual do filme é discreta. Iluminação e enquadramentos são utilizados para reforçar atmosferas, não para competir com o conteúdo da trama.
A estrutura de “As Duas Faces de um Crime” exige atenção. O filme não se apressa em apresentar sua reviravolta principal, que ocorre apenas nos momentos finais. Essa escolha narrativa é arriscada, mas eficaz. O impacto do desfecho depende inteiramente da construção prévia de personagens e situações. E é justamente por isso que funciona. Quando a revelação ocorre, ela altera retrospectivamente a leitura de toda a história. Não é apenas uma surpresa. É uma mudança de eixo.
Há quem compare este filme a “Um Crime de Mestre”, também dirigido por Hoblit anos depois. Ambos exploram o embate entre inteligência e manipulação. Mas “As Duas Faces de um Crime” é mais contido, mais interessado na ambiguidade do julgamento humano do que na lógica do jogo. Seu mérito está em não oferecer alívio moral. Mesmo após o veredito, não há sensação de justiça. Apenas de perda.
A trilha sonora, discreta, cumpre seu papel de sustentar a atmosfera de tensão sem se impor. A montagem é sóbria e evita cortes excessivos. O filme respeita o ritmo do espectador. Não entrega respostas fáceis nem assume que há uma única versão dos fatos.
A crítica social também está presente, ainda que de forma sutil. O sistema jurídico norte-americano, com sua retórica triunfalista e estrutura adversarial, é retratado como cenário propício à manipulação. Pobres, minorias e figuras periféricas aparecem sempre como peões nas estratégias de figuras mais influentes. Aaron Stampler, mesmo sendo o centro do enredo, permanece como um objeto nas mãos de forças que o ultrapassam. O filme mostra como a justiça, quando vinculada ao espetáculo, se torna instável, permeável à vaidade, à opinião pública e ao cálculo político.
A pergunta que permanece após os créditos finais não é quem estava certo. É outra: o que acontece quando se descobre que ninguém nunca quis descobrir a verdade? O que “As Duas Faces de um Crime” mostra, com precisão inquietante, é que o tribunal nem sempre é um lugar de resolução. Às vezes, é apenas o lugar onde todos os lados aprendem a representar melhor.
★★★★★★★★★★