A história da humanidade é marcada por momentos em que impasses morais tornam-se inevitáveis. Guerras devastadoras, pestes implacáveis, escassez de alimentos e fome deixam o ser humano no limite. Circunstâncias como essas exigem as decisões mais árduas, aquelas que confrontam o que somos, o que acreditamos e o que estamos dispostos a fazer para continuar no jogo. Em meio ao caos, conceitos como ética, justiça e lealdade são colocados à prova, revelando tanto a grandeza quanto a miséria da alma do homem. Em tempos de embates bélicos nascem heróis e covardes em proporções equivalentes, legando um ensinamento inspirador às gerações seguintes. Frente a prisioneiros inimigos, um soldado pode ter de optar entre cumprir o protocolo de execução ou salvar uma vida inocente, arriscando-se ele mesmo a ir parar diante do pelotão de fuzilamento, acusado de traição. Civis, por seu turno, têm a escolha de ou abrigar perseguidos por regimes liberticidas e serem também alvo do escrutínio das autoridades, ou, de, comodamente, fechar os olhos à iniquidade e ao martírio alheio. Ou seja, lançá-los à morte, na prática.
A ambição é uma força vigorosa a impulsionar o ser humano a transcender seus limites, ir em busca de seus sonhos e romper com a mesmice. Querer alcançar algo maior — poder, riqueza, conhecimento, fama, glória — pode transformar o mundo. No entanto, essa vontade de derrubar as barreiras do possível e mudar o futuro tem seu quê de cruel ambiguidade. A ambição cega, corrompe e arrasta indivíduos para a egolatria e para a solidão. Grandes impérios ascenderam e foram ao chão pela sanha da hegemonia. Ainda assim, é forçoso reconhecer que os maiores avanços, nas artes, na ciência, na política, partem da criatividade e no dom visionário de quem ousa desafiar o estabelecido. O busílis é, portanto, domar a ambição, mas não sufocá-la. Quando bem-direcionados, esforços por progresso convertem-se no primeiro tijolo de um palácio; se saem do controle, são o prenúncio da tragédia.
A História está repleta de armadilhas que distorcem a realidade dos fatos. Escrita pelos vencedores, ela apaga as vozes dissidentes, minimiza injustiças e glorifica a violência, e o passado torna-se um instrumento dos poderosos de turno, que tratam de reforçar narrativas convenientes aos grupos dominantes. O revisionismo histórico, verdadeira praga nessa era da desinformação, ancora-se na descrença do cidadão, que não sabe mais a quem dar ouvidos, fenômeno encarnado também (e principalmente) por líderes populistas e irresponsáveis. O cinema ilumina as trevas do obscurantismo, do negacionismo, da ignorância, como se assiste nos sete filmes desta lista, tramas em que gênios e homens comuns travam batalhas duras contra um meio adverso e sua própria tepidez para não sucumbir.

Há muitas ressalvas a serem feitas acerca de “Oppenheimer”, bem como alguns elogios sinceros. O quase bombástico longa de Christopher Nolan sobre o físico americano que desenvolveu o artefato mais mortífero já concebidos pelo homem é um filme bastante previsível, a despeito de narrar uma história de há muito conhecida de 99% da população mundial; prolixo, mesmo que suas imagens terminem por compensar a demoradíssima espera pelo desfecho — ou mesmo pelos lances mais sublimes —; um tanto confuso em seus despejamentos maciços de informações sobre o público. Mas é também denso e poético em seus milhões de detalhes certeiros sobre a vida de Julius Robert Oppenheimer (1904-1967), o cientista mais importante do século 20 depois de Albert Einstein (1879-1955), cujas ideias foram simplesmente fundamentais para que chegasse ao objetivo de que trata Nolan, da mesma forma que os estudos de Isaac Newton (1643-1727) e Hendrik Lorentz (1853-1928) guiaram o alemão até suas incontestáveis Teoria da Relatividade Restrita e a da Relatividade Geral, de 1905 e 1915, respectivamente. O diretor-roteirista volta a algumas quadras determinantes na vida de Oppenheimer, como se de uma hora para a outra fosse tragado pela tempestade solar com que Nolan ilustra o prólogo. O espectador se defronta com os grandes olhos claros de Cillian Murphy mesmo nas sequências em que Oppenheimer, já um intelectual e um homem da ciência reconhecido com todo o mérito, é acossado pelos membros da Comissão de Energia Atômica (AEC na sigla em inglês) do Senado americano, presidida pelo almirante Lewis Strauss (1896-1974), representante da Virgínia Ocidental na Câmara Alta do parlamento pelo Partido Republicano. Uma coisa é certa: sem Oppenheimer, não teria sobrado ninguém.

Ainda há episódios sobre os quais pouco se sabe — ou sobre os quais não se sabe tudo — envolvendo a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O drama britânico “Munique: No Limite da Guerra”, uma adaptação do romance homônimo de Robert Harris, traz ao centro de sua história dois diplomatas, ex-amigos em lados adversários das batalhas, um representante do Eixo, o outro, dos Aliados. Christian Schwochow, o diretor do longa, parte da relação entre os dois personagens a fim de mostrar os desdobramentos da conferência de Munique, em 1938, e o acordo de paz entre Alemanha e Inglaterra que poderia ter nascido da iniciativa, mas restou frustrado. Charmoso, como grande dos filmes que retratam os bastidores de conflitos armados pelos salões suntuosos de palácios ao redor do mundo, “Munique: No Limite da Guerra” joga luz sobre questões básicas para se entender o que levou à eclosão de mais uma série de enfrentamentos entre povos, muito mais devastador que o encerrado vinte anos antes. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) fora a grande responsável por ratificar a hegemonia americana e os Estados Unidos se firmaram como a maior potência bélico-econômica do mundo desde então. Em 1917, a participação efetiva da América, afinada com Inglaterra e França, foi determinante para a vitória da Entente, grupo que reunia essas três nações, que pegou os alemães e italianos desprevenido e cansados depois de três anos de combate. Em 1939, Itália e Alemanha estavam prontas para dar o troco, cada uma liderada por seu facínora. Adolf Hitler (1889-1945), pelo lado germânico, e Benito Mussolini (1883-1945), comandando as tropas italianas, mergulhando o mundo em mais seis anos de caos. Não existe no trabalho de Schwochow, lançado em 2021, intenção de se esconder os jovens que foram desumanizados, seviciados e mortos pelos nazistas, mas a mensagem de esperança do filme chega a ser curiosa. “Munique: No Limite da Guerra” faz mais que apenas motivar a audiência a refletir sobre as causas e efeitos da guerra.

O fim está próximo e ele vem do alto. Por trás de grandes sucessos do cinema, todos dotados de algum grau de cinismo e descrédito na humanidade, em “Não Olhe para Cima” Adam McKay apresenta a sua versão para o maior medo da humanidade — e grande alívio para alguns —: a iminência da morte. Lançado em 2021, depois de quase dois anos de isolamento compulsório devido a uma pandemia que botou muita gente louca — e matou outro tanto —, McKay joga no caldeirão de seu filme suas impressões mais cômicas e dramáticas sobre as redes sociais como um foco perene de hostilidade e subversão de valores, o desenvolvimento tecnológico irrefreável, as reviravoltas do clima, a futilidade de pessoas que se pensam célebres, ou seja, a vida no século 21, mantendo cada assunto em sua gaveta correspondente e embaralhando-os quando lhe convém. Deliberadamente aloprado, em momento algum “Não Olhe para Cima” abre mão de manter o espectador na rédea curta, mostrando-lhe, até de modo didático, com o que importa se preocupar ou não.

Em 1870, o capitão Jefferson Kyle Kidd, viúvo e ex-combatente de duas guerras, ganha a vida cruzando o Texas a fim de ler para a população despachos sobre o que se passa em outras partes dos Estados Unidos e do planeta, muito menor século e meio atrás, oficio que logo terá de abandonar, uma vez que a imprensa do país se consolida rapidamente. No caminho, Kidd se depara com Johanna, uma órfã de dez anos que perdera a família num dos conflitos mais recentes e está à própria sorte, criada por índios e que não fala inglês. A menina, de imediato hostil a qualquer tentativa de aproximação, concorda em seguir com o cavaleiro, que primeiro a entrega a um casal de lavradores, mas acaba por incorporá-la a sua caravana de um homem só. Juntos, os dois enfrentam os mesmos perigos e vivem uma mesma vida, um se valendo do outro para curar sua própria alma.

A depender de onde se queira chegar — e de que jeito —, uma origem humilde pode ser um grande obstáculo. Essa é a primeira ideia defendida por “Um Homem de Sorte”, cujos personagens vão entrando numa espiral que mistura aspirações por fortuna e prestígio, de um lado, contra um verdadeiro sistema, organicamente constituído, poderoso e que não tem a menor intenção de ceder espaço a quem quer que seja, do outro. Por que então esses mundos paralelos ousaram se cruzar, afinal? Essa é a pergunta que o filme de Bille August tenta responder. O roteiro, adaptado do romance “Lykke-Per”, escrito pelo dinamarquês Henrik Pontoppidan (1857-1943), prêmio Nobel de Literatura de 1917, e publicado em oito volumes entre 1898 e 1904, puxa a corda do melodrama de tal maneira que, em diversos momentos, se tem a nítida impressão de que ela não vai suportar. Contudo, August, cujo “Pelle, o Conquistador” (1987) foi agraciado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1989, sabe muito bem a hora de sair de cena e deixar que seus personagens falem por si sós. O aspecto eminentemente choroso da história é o que prevalece; entretanto, o pulo de gato no trabalho de August é o modo sorrateiro como escolhe dizer o que nunca é explicitado, mas todos sabemos exatamente do que se trata. O filme de Bille August decerto é um dos mais sofisticados do cinema do século 21, mesmo em se refinando o corte a somente os produzidos pela crescente indústria cinematográfica da Dinamarca, plena de genuínas obras de artes. A sequência da despedida de Per e aquela que poderia ter sido a mulher de sua vida, é sutil, mas impactante, e prova que, malgrado se repitam em dadas circunstâncias, cada filme seu encanto diferente. “Um Homem de Sorte” não foge à regra.

Aos 22 anos, o matemático John Forbes Nash Jr. (1928-2015) defende sua tese de doutorado na Universidade de Princeton. O estudo, revolucionário, consiste numa teoria que associa jogos e rivalidade na solução de questões econômicas, confrontando ninguém menos que Adam Smith (1723-1790) e promovendo a maior revolução em um século e meio de teoria econômica. Nash ganha os holofotes e torna-se famoso em todo o mundo, mas em “Uma Mente Brilhante” Ron Howard parece determinado a convencer o espectador de que nada foi tão simples assim — e não foi mesmo. Um espectro rondava o gênio de Nash e, por coincidência ou não, manifesta-se justamente em seu momento de esplendor, no auge de sua produção intelectual e plenitude afetiva. O roteiro de Akiva Goldsman, baseado na biografia homônima da jornalista teuto-americana Sylvia Nasar, de 1998, pinta Nash como um homem comum, dado ao isolamento social, um tanto arrogante, uma criatura que não desperta o interesse de ninguém, de que ninguém faz questão de ter por perto, e que foi aprendendo a pagar solidão com rancor, ainda que raramente apareça sozinho no decorrer dos 135 minutos. Russell Crowe e Jennifer Connelly encarnam o típico casal de propaganda de margarina, ao menos até que a esquizofrenia instale-se de vez, na pele de William Parcher, o suposto agente federal vivido por Ed Harris que coopta Nash para a missão de decodificar mensagens secretas enviadas pelos países comunistas da ex-União Soviética, dispostas em notas na primeira página do “New York Times”. “Uma Mente Brilhante” é uma história sobre vida e morte, saúde e doença, sucessos e fracassos, e o muito pouco de lógica que há em todos esses elementos.

Robert Zemeckis notabilizou-se por enfrentar o tempo, e vencê-lo de uma maneira bem especial. Ao longo da carreira, Zemeckis foi cristalizando junto ao público e à própria indústria a vontade de empreender algo grandioso, sempre tendo por fixação o passar dos anos. Decerto foi com “De Volta para o Futuro” (1985) que o diretor tornou evidente sua intenção de desafiar a cadência dita natural dos acontecimentos e dos registros mais prosaicos da vida ordinária de gente comum, uma marca de seu trabalho, e com “Náufrago” faz questão de revisitar a imagem do tempo que passa, implacável, sob outra perspectiva. Chuck Noland, um engenheiro de sistemas que trabalha para a FedEx, parece ter a vida perfeita — até ir parar numa ilha deserta no meio do Oceano Pacífico. Aqui, Zemeckis não desdobra nenhuma fantasia confusa e saborosa a exemplo do que apresenta em “Bem-Vindos a Marwen” (2018), sobre um homem que, depois de barbaramente espancado, constrói a maquete da cidade onde mora, povoando-a com bonecos que ganham vida, numa espécie de renascimento. Esta também é uma metáfora sobre autodescoberta e mudanças radicais ao cabo de um trauma violento, mas há muito menos espaço para respiros. O roteiro de William Broyles Jr. tem bastante do niilismo schopenhaueriano que uma história como essa pode encerrar, mas guarda lugar também para a redentora esperança, que ora toma corpo num relógio velho, ora assume a figura de uma bola de vôlei a que Noland dá o nome de Wilson. Esses seres inanimados chegam a emocionar, mas só porque por trás está Tom Hanks, e não há nada que Tom Hanks não seja capaz de fazer — inclusive perder 25 quilos do dia para a noite. “Náufrago” é um filme que derruba.