Livros de colorir são o novo cigarro? A obsessão estética da geração Z que preocupa especialistas

Livros de colorir são o novo cigarro? A obsessão estética da geração Z que preocupa especialistas

Há algo incômodo na obsessão com o traço. No modo como certos jovens — não todos, claro, mas um número crescente deles — apertam com ferocidade as mandíbulas sobre as pontas de lápis macios, como se a perfeição de um gradiente entre lilás e vinho pudesse redimir o vazio do dia. Ou do feed. É quase silencioso, esse vício. Elegante, até. E, justamente por isso, mais difícil de notar. A curva do contorno precisa. A escolha da paleta. A harmonia obsessiva entre os espaços em branco e os pigmentos. Tudo parece leve, delicado, quase terapêutico. Mas há uma rigidez por trás da suavidade. Um nervo tenso onde deveria haver descanso.

Em outro tempo, colorir era um gesto sem público. Uma distração sem vaidade. Hoje, há algo de performativo, de exponencial. Há pressa onde deveria haver pausa. Em vídeos com milhões de visualizações, mãos jovens deslizam sobre papéis importados, enquanto trilhas sonoras suaves — às vezes melancólicas, às vezes triunfais — moldam a experiência visual. O colorido se faz espetáculo. E o espetáculo, produto. Nesses rituais de autocuidado encenado, a falha não é permitida. Quem escorrega o tom, quem ultrapassa a linha, quem opta pela cor errada, sente-se expulso de um culto que não perdoa o erro.

Talvez não seja justo comparar esse gesto antigo e íntimo com o cigarro — afinal, colorir não destrói os pulmões. Mas há semelhanças desconfortáveis. O alívio momentâneo. A repetição quase compulsiva. O disfarce de um incômodo mais fundo que não se nomeia. E, sobretudo, o pertencimento. Porque há algo de comunitário nesse novo hábito: quem colore, filma. Quem filma, exibe. E quem exibe, convida. A estética se espalha como fumaça: lenta, bonita e difícil de conter.

Nos fóruns e grupos fechados, trocam-se códigos. Não só de cor, mas de conduta. Há manuais implícitos de como montar o estojo ideal, quais marcas são aceitáveis, quais tipos de papel valorizam mais a textura do lápis aquarelável. E há, também, uma espécie de ranqueamento informal da destreza. Alguns perfis ganham milhares de seguidores por colorirem “com perfeição cirúrgica”, enquanto outros são criticados, ignorados, arrastados para baixo pelo algoritmo. A brincadeira virou prova. A diversão virou padrão.

Psiquiatras e terapeutas têm notado, com certa inquietação, que a suposta “atividade antiestresse” vem acompanhada de sintomas que contradizem sua promessa: insônia, tensão muscular, ansiedade antecipatória. “Eles sentem culpa por não colorirem todo dia”, conta uma terapeuta cognitivo-comportamental de São Paulo, referindo-se a um grupo de adolescentes que acompanha. “É como se fosse uma missão estética a ser cumprida. Se não colorem, estão falhando com a própria identidade.”

É estranho pensar que lápis de cor e estojos pastel possam provocar tanta pressão. Mas seria mais ingênuo, ainda, achar que algo está imune à lógica da performance. A geração Z cresceu sob os olhos do espelho digital — e não raro confunde interioridade com aparência. O “estou bem” virou um plano de fundo cuidadosamente curado: velas acesas, playlists ambientes, uma xícara de chá e uma mandala em processo. Não se trata de acusar. É, antes, um pedido de atenção. Porque o gesto que acalma também pode esconder o ruído.

Em certos círculos, o livro de colorir virou fetiche. E, como todo fetiche, exige investimento — não apenas emocional, mas financeiro. Há títulos que custam mais de R$ 400, edições limitadas, ilustradores-celebridade, páginas vendidas como arte em molduras. Uma geração que consome menos livros literários em papel passou a gastar somas consideráveis com volumes que não se leem, mas se preenchem. O objeto, aqui, importa mais que o conteúdo. A experiência, mais que a leitura. E tudo isso, claro, perfeitamente fotografável.

O mais curioso — ou trágico, dependendo do ponto de vista — é que o colorir, em sua origem, era convite ao erro. Nenhuma criança se intimidava com os traços tortos. Nenhuma linha fora do contorno impedia o prazer. Mas algo se perdeu nesse caminho em que o simples virou sofisticado demais. Agora, colorir é curadoria. É estética de vitrine. É mais uma expressão do medo de falhar — não na arte, mas no papel social que essa arte passou a ocupar.

Não há crime em buscar alívio. Nem em querer beleza. Mas talvez exista perigo quando se espera que a beleza carregue tudo. Quando um lápis é empunhado com o mesmo peso de uma nota de corte. Quando a tranquilidade só se valida se for postável. Quando o descanso exige planejamento, disciplina e aprovação pública.

É só um livro. São só lápis. É só uma tarde em que alguém decidiu preencher o branco com cor. Mas, de repente, tudo isso virou símbolo. E, como acontece com os símbolos, esquecemos de onde vieram. E por que. E para quem.