Crônica

Procure saber: biografias que comem fígados

Do jeito que os medíocres fazem escola hoje em dia, encontrar pessoas cuja leitura ultrapasse os patéticos perfis facebookianos com suas repetitivas mensagens alvissareiras, por si só, já parece uma tremenda aberração. Eu desconfio das estatísticas. Após o advento das redes sociais, eu receio que a cada dia os brasileiros, que já não eram muito chegados, leiam menos livros. Ocorre que, essencialmente, o mercado clama pela esculhambação. Humilhar, constranger, desencantar, colocar alguém pra baixo… Eis aí o papel do homem esperto: subtrair, faturar e ainda sair cantando de galo.

Da beleza imunda, fedorenta e luxuosa que nasce à noite no meio do lixo

Da beleza imunda, fedorenta e luxuosa que nasce à noite no meio do lixo

A esta hora da noite, o trânsito na cidade definha. Um a um, os carros seguem para longe dali, tragados por seus destinos em ruas, vielas, garagens. O mundo adormece na intimidade de cada casa, a cidade aquieta, esgotada, apagando suas luzes por dentro. Aqui fora, o caminhão branco, sujo e forte avança lento, furioso pela rua repleta dos entulhos do dia, seguido de perto por dois homens que correm de uma calçada a outra, recolhendo os enormes sacos de plástico negro para lançá-los ao estômago imenso do rinoceronte de aço e rodas que avança esganado e barulhento.

Pequena bula de como viver na pressa, com paz e muita ginga

Pequena bula de como viver na pressa, com paz e muita ginga

Hei essa proposição aí de cima é meio que absurda, né. Porque hoje — sem climas de sadomasoquismo, explicando logo de saída — a gente passa os dias inteiros chicoteados pelo tempo. A maldição dos segundos. Que jamais param nem pra respirar. Ou mesmo tomar uma água. Droga. Tempo, tempo, tempo, tempo, até a música clama. O fato é: não conseguimos, até o momento desarmar essas engrenagens confusas dos relógios da nossa existência, que bebem energéticos gasosos continuamente. E rodam em círculos, martelando as nossas atividades e tarefas, como filme de terror, na pressão. E na moral. Ninguém discute os domínios do tempo.

Do risco de ser gentil em tempos grosseiros

Do risco de ser gentil em tempos grosseiros

“Sobe”, grita o homem correndo para o elevador lotado, prestes a iniciar sua viagem rumo ao topo do prédio comercial de 20 andares. A essa hora da manhã, perder o elevador significa chegar atrasado ao trabalho, então ele corre mais rápido. Nenhuma das tantas pessoas já embarcadas faz qualquer esforço para ajudá-lo em sua empreitada. Ninguém segura a porta de aço, ninguém aperta o botão que retarda a partida da nave, ninguém sequer lhe dirige um olhar de solidariedade e torcida, “corre, pobre diabo, você vai conseguir, eu acredito em você”. Nada. Ninguém.

“Sem tesão não há solução”

“Sem tesão não há solução”

No final dos anos 80, quando muitos dos futuros leitores da Revista Bula ainda não tinham nascido, um irrequieto psiquiatra, Roberto Freire, nadando por rios primitivos do imaginário — e posicionando-se contra a corrente de hábitos carcomidos, assumiu pensar fora da caixa do social. Atirou ao lixo os restos de discursos terapêuticos mascarados, acolchoados em bolsas de gelo verbal. Quebrou as plácidas e acomodatícias normas do bem viver.