Procure saber: biografias que comem fígados

Botar pra foder, este é o ponto. Barbarizar. Mais do que procurar saber, mano caetano, procure confundir, pois, na seara da arte, diz o poeta, é proibido proibir. E se aquilo, na verdade, não é arte, mas, maldade, má fé ou sacanagem? Como ter certeza dos reais propósitos de um escriba?

Manual das biografias sensacionalistas: pinçar, garimpar, arrancar das fontes secretas as minúcias mais picantes, quiçá humilhantes, os detalhes alegóricos sem valor histórico, porquanto, histéricos. Não tem erro: são três palitos. É nhambu na capanga da editora.

O raciocínio do cidadão comum — o idiota comum, aquele que, em termos de relevância cultural e histórica, nem cheira, nem fede — funciona assim: se um sujeito é famoso, e este sujeito não é ele próprio, que aguente a bucha. Afinal de contas, as regras hidrofóbicas do mundo cão são claras, senhores arnaldos: em se tratando de celebridades, os incógnitos têm todo direito de contribuírem para a desconstrução, a demolição da imagem, uma espécie de revestrés da idolatria.

Quem, gozando de plena adimplência das faculdades mentais, vai querer biografar um médico cubano arrancando unhas no Acre, um ex-bóia fria que ajudou a construir Brasília, uma freira estrangeira assassinada de qualquer maneira numa tocaia à beira do caminho no Pará, o soldado desconhecido que não conhecia o amor até ser alvejado no peito na Guerra do Paraguai? Não se engane: deseja publicar e vender livros a rodo? Mire, não nos meus, nos seus, nos nossos, mas, nos podres dos ídolos pop.

Cumpre ressaltar — como se isso não estivesse claro — que um famoso não passa de um pobre diabo como outro qualquer, só que possui notoriedade, a lataria tá impecável, brilhando. No frigir dos ovos, ele é parecido com a gente quando sente dor, quando senta na latrina pra cagar de rir dos outros, quando pare criaturinhas com cara-de-joelho mais conhecidos como “fetos”, quando tem um orgasmo, quando deixa escapulir um orgasmo, quando perde o afeto, quando sente medo, quando erra feio, quando não se parece mais com a imagem pintada pela mídia.

Enfim, para escritores mal intencionados e sua ralé de leitores, biografar os famosos é arrancar-lhes a pele, o encanto e a mística. Por exemplo, as biografias bombásticas atreladas às mazelas humanas de alcova e às peripécias sexuais supostamente picantes (o sexo que os outros fazem parece coisa de outro mundo) são, sem dúvida, um desserviço à fantasia e à sublimação, um atentado violento ao “faz de conta que existe alguém mais legal do que a gente no planeta”.

Se um dia eu me tornar biografiável, ao ponto de um desocupado se dar ao trabalho de contar a minha desautorizada história de vida, poderei ficar bastante constrangido — se ainda não tiver sido devorado pelos micróbios — caso seja revelado, por exemplo, que, de tão gordas, eu comia as terças-feiras de carnaval pelas beiradas.

Atenção! Informe caritativo: não perca o seu tempo a vasculhar nas entrelinhas da frase anterior uma sacada genial deste escritor. Ela quer dizer nada. Jamais se esqueça, cabeça-de-bagre: eu não sou um escritor-cabeça. Anote isto aí. Se preferir, publique. Desde já, eu deixo autorizado.

Nos últimos dias, a polêmica acerca da proibição ou não das biografias não autorizadas no Brasil tem agitado o meio editorial já que, fora dele, a coisa anda meio devagar quase parando. Artistas e intelectuais veteranos que se manifestaram contrariamente a elas têm sido acusados de censores, reacionários e velhos (putz!).

Aliás, neste quesito das adjetivações diminutivo-escorchantes, não tem psicólogo, nem Liga da Melhor Idade que dê jeito: hoje em dia, chamar alguém de “velho” já virou até ofensa. Só tomando tiro na têmpora ou conhaque com rivotril pra suportar tamanha humilhação.

Em essência, as biografias escandalosas buscam catapultar biógrafos medíocres, além, é claro, de entulhar com grana os cofres das editoras. A sordidez dos leitores carniceiros orbita em curiosidades do tipo: descobrir, de uma vez por todas, se um famosíssimo cantor romântico realmente tinha uma perna mecânica; se aquele humorista já falecido teve o septo nasal corroído de tanto cheirar cocaína; se um famoso diretor novaiorquino de cinema engravidou mesmo a própria enteada; se uma famosa apresentadora da TV tinha predileção pelo coito anual, ao invés do anal; se aqueles quatro roqueiros ingleses fumaram maconha escondidos no banheiro do palácio antes de serem condecorados pela rainha; se o galã da novela das oito curtia, na verdade, um sessenta e nove com rapagões de vinte e poucos anos; e outras particularidades da intimidade humana.

Do jeito que os medíocres fazem escola hoje em dia, encontrar pessoas cuja leitura ultrapasse os patéticos perfis facebookianos com suas repetitivas mensagens alvissareiras, por si só, já parece uma tremenda aberração. Eu desconfio das estatísticas. Após o advento das redes sociais, eu receio que a cada dia os brasileiros, que já não eram muito chegados, leiam menos livros. Ocorre que, essencialmente, o mercado clama pela esculhambação. Humilhar, constranger, desencantar, colocar alguém pra baixo… Eis aí o papel do homem esperto: subtrair, faturar e ainda sair cantando de galo. Ou de galinha. Mulheres, quando querem, também saber ser malvadinhas.

Não é proposital, nem por excesso de burrice, mas, eu costumo mudar de opinião mais do que deputados federais mudam os seus votos durante as votações secretas na Câmara e as lobistas gostosas mudam de calcinha para convencerem as autoridades na cama. Por enquanto, até que o dia amanheça, eu acho que sou contra as biografias não autorizadas. Contudo, sou aberto a bons argumentos e caldo de galinha.

Nunca se sabe que proporção um deslizezinho do passado poderá adquirir na pena de um biógrafo pouco criterioso em busca do estrelato. Pra terminar: posso contar-lhe um segredo? Quando eu era criança, subia no livro de receitas culinárias da vovó para espiar a empregada pegando uma ducha. Por falar em gastronomia e putaria, se um dia você cismar em escrever uma biografia para comer o meu fígado, ao menos use camisinha. Estamos combinados?