Autor: Enio Vieira

Literatura, boemia e pensamento

Literatura, boemia e pensamento

Boas ideias surgem fora das salas de aula ou seminários acadêmicos — hoje os santuários do bem pensar. Onde brota o pensamento mesmo, com nome digno de ser dito assim, é em diálogos sem fim determinado. E ninguém como os boêmios para a arte de jogar conversa fora. A literatura e a filosofia estão repletas de autores e personagens que passam o tempo sem fazer nada, apenas batendo papo. Mas é nesse papo despretensioso que aparecem coisas consideradas perigosas, sejam estéticas ou políticas.

“Os Substitutos”, de Bernardo Carvalho, expõe o fim do mundo Divulgação / Pablo Saborido

“Os Substitutos”, de Bernardo Carvalho, expõe o fim do mundo

A boa ficção se preocupa em apenas expor situações e personagens, sem a necessidade de apresentar provas. Quem documenta e busca comprovações são os cientistas e os jornalistas. Ao fazer a exposição da realidade, o artista chega antes dos outros (a ciência, sobretudo) a uma verdade. No Brasil, o escritor Bernardo Carvalho é um dos mestres do jogo ficcional que se aproxima e se afasta do “real”. Ele desconfia do chamado realismo e luta contra a ideia de escrita como registro. “A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates”, escreveu ele no romance “Nove Noites” (2002).

O olhar e a escuta de Kleber Mendonça Filho Divulgação / Ancine

O olhar e a escuta de Kleber Mendonça Filho

O filme “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho, é um acontecimento. Chamá-lo de documentário pode ser pouco, em vista dos elementos variados que compõem a história. O diretor fez, de novo, um cinema que pensa e não apenas narra uma boa trama. A obra está nos serviços de streaming para venda e aluguel. O olho de Mendonça vê o que passa despercebido das pessoas, e a escuta vai mais além para pegar coisas dispersas e perdidas no mundo moderno — que pode ser apenas uma casa, uma rua da cidade do Recife ou mesmo o país.

Como a literatura mostra o trauma das ditaduras na América do Sul Foto / Cris Faga

Como a literatura mostra o trauma das ditaduras na América do Sul

Cada região do mundo tem um grande assunto para a ficção enfrentar, tanto no presente como no passado. Segundo Perry Anderson, os africanos e indianos lidam com questões do colonialismo. Europeus carregam o peso do nazismo e da migração atual oriunda de suas antigas colônias. Os norte-americanos possuem o fardo da escravidão e da paranoia de ser uma potência imperialista. Já a literatura da América Latina, diz o historiador, vive a memória catastrófica das ditaduras militares do século 20.

O Conde, na Netflix, faz um grande retrato da ditadura chilena e de seu criador Pinochet Pablo Larrain / Netflix

O Conde, na Netflix, faz um grande retrato da ditadura chilena e de seu criador Pinochet

Vampiros, lobisomens, anjos, unicórnios e diabos jamais existiram, mas qualquer pessoa sabe as formas desses seres, graças às artes. Em sentido contrário, há ditadores e nazistas, por exemplo, dos quais se tem dificuldade de fixar suas imagens — cabendo mais à ficção a tarefa de capturar as coisas impensáveis que eles fizeram. Lançado na Netflix, o filme “O Conde” do chileno Pablo Larraín surpreende ao criar uma sátira política e irrealista sobre Augusto Pinochet, por meios das figuras do vampirismo.