O passado, muitas vezes, assemelha-se a uma fera enjaulada. Aparentemente domado, ele é nutrido e ignorado, até que sua verdadeira força irrompe, incontrolável. Em “O Leitor”, a narrativa expõe a corrosiva relação entre um jovem e uma mulher vinte anos mais velha, marcada não apenas pela disparidade etária, mas também por abismos ideológicos e morais que transformam a paixão em uma arena de destruição mútua.
Dirigido por Stephen Daldry, o filme adapta o romance homônimo de Bernhard Schlink, publicado em 1995, e constrói um drama de guerra repleto de ambiguidades. Mais do que um confronto entre culpa e inocência, a obra explora as escolhas humanas como uma espécie de maldição persistente. O domínio técnico de Daldry, conhecido por trabalhos como “The Crown”, eleva o texto literário a um estudo sobre a abjeção e o fascínio, ambientado em um dos períodos mais sensíveis da história moderna.
A narrativa começa em 1995, com Michael Berg acordando ao lado de uma mulher desconhecida, apenas para se despedir sob a desculpa de compromissos inadiáveis. Este momento o transporta ao passado, para 1958, quando, aos 15 anos, chega a Berlim, doente e solitário. Sua jornada quase termina num beco sombrio, até que Hanna Schmitz o encontra e cuida dele com dedicação inquietante. O vínculo entre os dois transcende rapidamente o altruísmo: ela exige que Michael leia para ela como condição para o envolvimento sexual. Interpretada de forma magnética por Kate Winslet, Hanna transita entre a vulnerabilidade e um fascínio perturbador. Sua nudez, cuidadosamente filmada por Daldry, evita o vulgar e reforça a dualidade da personagem.
A relação, no entanto, desmorona abruptamente quando Hanna desaparece sem explicações. Oito anos depois, Michael, agora estudante de Direito, a reencontra no tribunal, onde ela enfrenta acusações pelos crimes cometidos como colaboradora do regime nazista. A descoberta é um choque, mas também um ponto de reflexão para Michael, vivido com profundidade por David Kross na juventude e por Ralph Fiennes na fase adulta. O vaivém temporal orquestrado por Daldry, baseado no roteiro de Schlink e David Hare, sublinha o peso das memórias que Michael carrega, tão luminosas quanto devastadoras. Ele revive seu passado com Hanna enquanto tenta navegar pela complexidade ética de seus atos e omissões.
A tensão narrativa se intensifica quando Michael, preso em um dilema moral, enfrenta a contradição entre sua ligação emocional e a monstruosidade das ações de Hanna. Ao mesmo tempo, seu caso com Rose Mather (Lena Olin), uma judia, reflete inversamente os dias que passou com Hanna, ecoando a mesma dor e culpa. Nesse emaranhado de memórias e escolhas, “O Leitor” não busca respostas definitivas, mas apresenta uma análise sutil do acaso e da fragilidade humana.
Kate Winslet, em uma atuação premiada com o Oscar, personifica a indignidade e a complexidade moral de Hanna, enquanto Fiennes retrata Michael como um homem consumido pela vergonha e pelo arrependimento. A narrativa, longe de qualquer maniqueísmo, desafia o espectador a confrontar a natureza das próprias imperfeições.
“O Leitor” se apresenta como um lembrete sombrio da coragem necessária para encarar verdades pessoais em tempos de julgamentos moralistas e respostas simplistas. É um testemunho de que a força do acaso, por mais devastadora que seja, também é inevitavelmente humana.
★★★★★★★★★★