A obsessão humana é uma força inabalável, muitas vezes o único vestígio de persistência em uma vida marcada por desilusões, ambições fracassadas e temores profundos que habitam as camadas mais sombrias da psique. Esses fantasmas interiores não se rendem facilmente; eles aguardam pacientemente por brechas, tal qual um vírus oportunista que ataca seu hospedeiro ao menor sinal de vulnerabilidade. Quando a defesa cede, a invasão ocorre de maneira furtiva e implacável.
Os invasores não apenas drenam recursos vitais, mas também nutrem uma ilusão grandiosa: a de dominar o organismo que lhes dá suporte. O paradoxo, no entanto, é evidente e irônico: o avanço do parasita resulta, inevitavelmente, na destruição do sistema que o sustenta. O equilíbrio, portanto, é precário, e a transgressão de limites pode ser fatal tanto para o agressor quanto para o hospedeiro.
Esse ciclo pernicioso é explorado de maneira contundente em “71 — Esquecido em Belfast”, dirigido pelo francês Yann Demange. O filme aborda os conflitos étnico-religiosos entre britânicos e norte-irlandeses, retratando-os como uma enfermidade crônica que exige tratamento constante, mesmo sem garantias de cura. A violência que permeia a história da Irlanda do Norte e sua relação com o Reino Unido se estende por décadas, enraizada em eventos históricos que, embora distantes, ecoam intensamente no presente.
Conhecidos como “The Troubles” (“Os Problemas”), esses conflitos têm suas origens debatidas pelos historiadores, variando entre o surgimento da Força Voluntária de Ulster em 1966 e o envio de tropas britânicas em agosto de 1969. Demange, no entanto, escolhe o ano de 1971 como palco de sua narrativa, um período tumultuado que testemunhou tanto marcos políticos importantes, como a entrada do Reino Unido no Mercado Comum Europeu, quanto perdas significativas, como a independência do Bahrein.
O filme, conduzido pelo roteiro conciso de Gregory Burke, evita didatismos ao oferecer apenas vislumbres das motivações que alimentam o conflito. A trama acompanha Gary Hook, interpretado por Jack O’Connell, um jovem soldado britânico enviado a Belfast para integrar uma missão de rotina. O grupo de Hook logo se vê envolvido em um episódio de extrema violência, onde a linha entre aliados e inimigos é perigosamente tênue. Em meio ao caos, Hook é deixado para trás, ferido e isolado em território hostil. Sua luta pela sobrevivência é agravada pela indiferença de um ambiente onde a violência não discrimina, e a única distinção real entre os combatentes é um sotaque que carrega a dureza de anos de animosidade.
O’Connell oferece uma performance visceral, capturando a vulnerabilidade de um homem comum preso em circunstâncias extraordinárias. Sua atuação foi devidamente reconhecida em importantes festivais, incluindo o de Toronto, e pelo BAFTA, consolidando sua reputação como um dos grandes talentos de sua geração. Demange, por sua vez, se destaca ao transformar uma história de guerra em uma análise intimista das cicatrizes deixadas por um conflito interminável.
Embora “71 — Esquecido em Belfast” traga à memória filmes icônicos como “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), de Steven Spielberg, as semelhanças são apenas superficiais. Enquanto Spielberg contou com um orçamento robusto e uma abordagem épica, Demange adota uma estética mais contida e intimista, refletindo as restrições de sua produção. Hook não é um herói épico; ele é apenas uma peça em um tabuleiro complexo, lutando por sobrevivência em meio a uma guerra que o ultrapassa. Essa abordagem oferece uma perspectiva humanizada sobre o conflito, lembrando que, em meio a batalhas políticas e ideológicas, são os indivíduos comuns que carregam o fardo mais pesado.
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