O filme selvagem e perturbador da Netflix que vai grudar na sua cabeça por semanas Divulgação / Alfa Pictures

O filme selvagem e perturbador da Netflix que vai grudar na sua cabeça por semanas

O vazio existencial atravessa o tempo e se manifesta em formas diversas. Independentemente da época, sempre há aqueles que encontram refúgio apenas na própria companhia, um isolamento que se torna quase indispensável, pois a presença constante de si mesmo exige espaços amplos. Poucos percebem o quanto se expandiram — e quando isso acontece, a constatação é de que seu isolamento ocupou não só a casa e a rua, mas até mesmo a cidade. Por fim, o mundo se revela pequeno demais para o deserto interior que os habita.

“Sob a Pele do Lobo” de Samu Fuentes, lançado em 2017, é um retrato cru da rotina banal de um homem moldado pelo ambiente que o cerca, e justamente essa conformidade é o que o devasta. Martinon, vivido por Mario Casas, vive em uma aldeia deserta nas montanhas espanholas, fronteira com a França, onde o tempo parece ter consumido sua humanidade. Com anos de solidão às costas, o pouco de sensibilidade que lhe resta o incomoda. Fuentes explora a figura de um eremita que reflete anseios universais: a solidão não é exclusividade dos ermos; também nas multidões, a sensação de vazio pode ser esmagadora.

Na trama, Martinon é o retrato vivo da misantropia. Ele vive isolado em uma cabana de pedra, nas montanhas do século 19, e há tanto tempo que não se lembra mais de quando deixou de ter qualquer contato com o mundo exterior. Sua vida resume-se a caçar lobos para vender suas peles e suprir suas necessidades mais básicas. Ironicamente, essa atividade o obriga a romper ocasionalmente o isolamento, ao descer até a vila mais próxima para vender seu produto. A relação entre o caçador e os lobos se estreita a tal ponto que ele próprio parece ter se transformado em uma fera. Nessas idas à vila, o taberneiro Severino sugere que Martinon arrume um novo cão de caça, mas ele descarta a ideia, preferindo uma companhia humana.

A eventual proposta de Martinon ao pai de Pascuala, para que lhe “venda” a filha, ecoa um costume antigo, que ainda persiste em sociedades mais conservadoras ao redor do mundo. Ruth Diaz, que interpreta Pascuala, traz à personagem a dor silenciosa de uma mulher que, apesar de seus sentimentos por Martinon, não queria ser sua esposa. A breve interação entre eles, com poucas palavras trocadas, é marcada pela crueza e pelo deslocamento mútuo. Após uma virada dramática, Pascuala sai de cena e sua irmã Adela toma seu lugar. Interpretada por Irene Escolar, Adela se adapta melhor à montanha e à presença de Martinon, moldando-se às exigências brutais daquela vida e à sua nova condição de substituta da irmã.

Fuentes habilmente constrói a narrativa, levando o espectador a acreditar que Martinon está se transformando, talvez até desenvolvendo sentimentos por Adela, cuja presença suaviza sua natureza selvagem. No entanto, o desenrolar dos acontecimentos traz reviravoltas inesperadas, com novos conflitos e tragédias. Mario Casas brilha mesmo em meio à escassez de diálogos e de interação com outros personagens, enfrentando o desafio de encarnar um homem em constante conflito com sua natureza bestial. Ainda que em alguns momentos o roteiro perca a direção, a interpretação de Casas, aliada à magistral fotografia de Aitor Mantxola, que quase faz o filme parecer uma obra em preto e branco, mantém o público enfeitiçado pelo que a história não revela diretamente. Samu Fuentes, com suas escolhas ousadas, oferece uma narrativa onde o que não é dito pesa tanto quanto as palavras proferidas.


Filme: Sob a Pele do Lobo
Direção: Samu Fuentes
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 8/10