Tesouro francês adaptado de clássico de Diderot, na Netflix

Tesouro francês adaptado de clássico de Diderot, na Netflix

A afirmação de Miguel de Unamuno, que descreveu a vida como uma sucessão de esquecimentos, reflete com precisão a necessidade humana de escolher o que guardar e o que deixar para trás. Somos seletivos ao definir quais momentos de nossa trajetória merecem ser revisitados, enquanto varremos para o fundo da mente as memórias dolorosas. Inspirado de forma criativa na obra “Jacques, o Fatalista, e Seu Amo”, escrita por Denis Diderot no século 18, o cineasta francês Emmanuel Mouret oferece uma perspectiva audaciosa sobre uma mulher à frente de seu tempo no filme “Mademoiselle Vingança”. A trama se desenrola em um contexto onde ideias como feminismo, empoderamento e liberdade eram praticamente utopias inatingíveis para as mulheres, que, socialmente subjugadas, mantinham uma postura de complacência até que uma delas ousa quebrar essa cadeia de submissão.

A narrativa se passa no século 18, época em que os aristocratas, entediados e sem grandes desafios, entretinham-se ao criar intrigas emocionais e adultérios. Esse ambiente de frivolidades e manipulações é reminiscente de obras clássicas da literatura francesa, como “Ligações Perigosas”, escrita por Choderlos de Laclos, que também trata de jogos emocionais entre a elite. A estética desse universo, marcado por exuberantes penteados e trajes de luxo, é minuciosamente recriada por Anne Bochon, que eleva a moda da época a um nível de detalhamento fascinante. Sem as distrações da modernidade, esses nobres se ocupavam tramando esquemas elaborados, espelhando comportamentos descritos em clássicos literários que, inclusive, inspiraram adaptações contemporâneas, como “Segundas Intenções” e “Justiceiras”, ambas trazendo essas tramas de intrigas para o público atual.

O centro da narrativa é Madame de La Pommeraye, uma viúva rica que, apesar da idade avançada, mantém seu charme e decide se isolar da corte de Luís 15 em sua luxuosa propriedade. A atriz Cécile de France, que interpreta a protagonista, dá vida a uma mulher complexa, inicialmente cautelosa e defensiva, resultado de uma série de relacionamentos desastrosos. Ela se esforça para resistir às investidas do marquês d’Arcis, interpretado com maestria por Edouard Baer, cuja personalidade é a de um conquistador inveterado. O marquês se destaca por sua habilidade em fazer suas vítimas acreditarem que são únicas, um talento que o aproxima de personagens como Sébastien Valmont, de Laclos, que igualmente manipulava as emoções alheias com astúcia.

À medida que a história avança, o marquês prolonga sua permanência na residência de Madame de La Pommeraye, aparentando ser um homem mudado, mais maduro e digno. Seduzida pela ideia de que ele finalmente se tornara o homem que sempre desejou, Madame de La Pommeraye acaba cedendo ao seu charme. No entanto, o destino reserva reviravoltas significativas para os personagens.

No clímax do filme, o diretor Mouret reúne as peças-chave para o desfecho brilhante de sua obra. Natalia Dontcheva, no papel de Madame de Joncquieres, uma mulher outrora respeitada, mas caída em desgraça após ser abandonada grávida por outro nobre, se une à trama, trazendo consigo sua filha, Mademoiselle de Joncquieres, interpretada por Alice Isaaz. Esta jovem personagem, destacada no título em inglês do filme, é essencial para o desenrolar final, trazendo consigo um ar de justiça e vingança que dá ao filme seu tom conclusivo.

Com um estilo que remete ao melhor do folhetim setecentista, “Mademoiselle Vingança” costura habilmente as reviravoltas típicas de narrativas desse gênero, oferecendo uma conclusão que equilibra a importância de cada personagem, especialmente a Madame de La Pommeraye, cuja presença domina tanto o início quanto o desfecho da história. Embora alguns críticos possam considerar que esse tipo de trama tenha perdido relevância ao longo dos séculos, a realidade cotidiana refuta facilmente tais afirmações. Em tempos em que os dramas pessoais e as intrigas continuam a alimentar as manchetes e os interesses populares, a obra de Mouret mostra-se atemporal e ressoante.


Filme: Mademoiselle Vingança
Direção: Emmanuel Mouret
Ano: 2018
Gênero: Drama/Romance
Nota: 8/10