Tanto faz

Tanto faz

Quase na entrada da estação do metrô ouço a voz rouca e empostada que desafia a mesmice do início da noite: “A tristeza é a morte do assalto celestial”. No vão central da praça o dono da voz, um mendigo de meia-idade, age como se fosse um imperador romano que enlouqueceu no último ato. Dramático, o soberano dá passos lentos, faz paradas repentinas e, sem ninguém esperar, estufa o peito, ergue o queixo e repete, imponente: “É a morte do assalto celestial!”

Por associação livre, recupero uma frase de “A plenos pulmões”, do poeta russo que preferiu o suicídio à submissão: “Morre, meu verso, como um soldado anônimo na lufada do assalto”. Apesar da cena insólita e do verso marcante, prossigo o meu caminho, olho para frente, faço de conta que nada vi ou ouvi, cantarolo um sambinha dos antigos, penso no jantar e no descanso que me esperam em casa, chego a colocar os pés nos primeiros degraus da escada na estação do metrô, mas a danada da frase não saía da cabeça, a exemplo da repetição que pairava sobre a noite como uma espécie de maldição: “É a morte do assalto celestial!”

Desisto de submergir no metrô, dou meia-volta, me aproximo e procuro ver se o homem está embriagado, mas nada indica isto. Ansioso e excitado, sim, mas não fora de si ao andar para lá e para cá sobre os ladrilhos da praça. O estado de distanciamento da realidade não permite ao seu olhar se fixar em objetos ou pessoas, longe ou perto. De súbito ele para, firma os pés e, num crescendo típico dos palcos, inflama-se e grita: “Ninguém sonha mais com pérolas nas noites de domingo!” Após o esforço, leva a mão esquerda ao queixo e confere o efeito da sentença entre os presentes, como fazem os atores que perderam a confiança na capacidade de iludir a plateia ou os velhos humoristas cujas piadas permanecem engraçadas, mas eles não.

A decadência tirou tudo do mendigo, mas não o orgulho e a vaidade, como prova o sorriso de mofa tão caro aos marginais. Parece um outsider, um legítimo contestador dos anos 1970, mas é apenas um a mais dentre incontáveis à margem de sociedades sinceramente desinteressadas em tipos assim. Por coincidência, o mendigo está cansado de procurar trabalho e não quer mais ouvir falar das boas intenções da sociedade ou do governo. Sem as amarras sociais, sentindo-se liberto como alguém convertido a uma seita suicida, grita suas frases de revolta inútil que não sensibilizam os passantes, com exceção de um policial à distância e de três mendigos próximos que aplaudem, assoviam e gritam “muito bem!”, “viva!” e “bravo!” Não é de surpreender. Tanto nos bons romances quanto na realidade é fácil comprovar que a forma de solidariedade mais corajosa é aquela praticada entre os que pouco ou nada têm.

Chego mais perto. O mendigo não parece um principiante. Demonstra certa segurança adquirida talvez em outras praças, esses palcos espalhados pelas grandes cidades com plateias garantidas de transeuntes, pedintes, office-boys, desempregados, prostitutas, malandros, curiosos, bêbados, jornalistas e policiais. O desprezo explícito no sorriso de mofa esconde a última dose de orgulho e diz aos cidadãos apressados, prezados senhoras e senhores, ilustres espectadores, que tanto faz se debochavam dele (centenas, diariamente), se o evitavam (era invisível para milhões), se negavam uma marquise ou um pedaço de calçada para ele dormir (acontecia toda noite), se elementos ordinários da polícia o ameaçavam e roubavam seus trocados (sempre que possível). “Tanto faz!”, afirma o ar de zombaria que não respeita nem os raros espectadores.

De perto, confiro a aparência desleixada, o estado escancarado de decadência, as olheiras, acessos de tosse e cusparadas ao redor. Sem banho há dias, tem as roupas rasgadas e costuradas, alpercatas surradas, barba e cabelos compridos e desgrenhados. A velhice precoce é evidente: deve ter menos de 45 anos, mas aparenta quase 60. A respiração ofegante e o olhar descolado da realidade dão credibilidade teatral aos rompantes e frases criativas como a que diz agora, de novo alterado, imponente, com a voz rouca modulada e empostada: “Não temos as mãos livres nem pra esconder as próprias vergonhas!”

Como das vezes anteriores, o arzinho de escárnio retorna após a frase, assim como a consulta à reação dos presentes. Os mendigos, agora na companhia de uma prostituta, dois flanelinhas e um vira-latas, aplaudem com entusiasmo sincero. Pobres ao extremo, não contavam com nada na vida, mas era evidente que tinham boas maneiras e estavam satisfeitos; se achavam uns caras de sorte por testemunharem a performance do melhor ator de todos os tempos no teatro mais bonito da cidade.

“De onde tira estas frases?”, me pergunto. Talvez tenha sido casado com uma poetisa e repete agora frases aleatórias dos poemas dela. Talvez tenha ele próprio tentado ser poeta na juventude… Se foi este o caso, paga um preço justo e proporcional ao tamanho do erro. Ninguém com a sanidade mental sob controle arrisca-se a ser poeta no Brasil a não ser para se decepcionar com os minguados leitores, odiar os numerosos editores e contentar-se em viver abaixo da linha de pobreza. Lembro, então, de mais um verso do russo suicida e genial: “Os versos para mim não deram rublos, nem mobílias de madeiras caras. Uma camisa, lavada e clara, basta — para mim é tudo”.

O mendigo nem este pouco obtivera e não irá longe. Partirá antes da hora, sabe que a força física e a saúde mental o abandonaram e que o futuro foi cancelado. Nos postos de saúde que os pobres, alcoólatras e mendigos evitam graças ao instinto de sobrevivência, os médicos e enfermeiros sabem, os familiares e vizinhos também. Até o acerto de contas acontecer, seguirá sua marcha protegido pelo manto da loucura. Em situação idêntica, milhões encontram nele a última proteção e a coisa toda é muito simples, funciona como uma espécie de cortina que esconde a humilhação cotidiana. É o caso do mendigo, exposto à plateia que atravessa a praça e entra e sai da estação do metrô como se fosse ao teatro assistir a uma peça que não emociona ou diz algo que preste, só rouba um pouco do precioso e inútil tempo de cada um.

Começo a me afastar e retomo o meu caminho, mas a cena e as frases permanecem na cabeça. Preciso me livrar delas, não servem para nada. Nas escolas de jornalismo aprendemos que a função da imprensa é separar a informação importante da inútil e, óbvio, publicar a inútil. Uma sugestão de pauta com o mendigo não interessará a nenhum jornal ou revista. Os bem-vestidos editores e subeditores de ternos bem cortados e sapatos italianos de bico quadrado preferem fazer roleta-russa com cinco balas no tambor a aprovar algo relacionado ao tema. Para eles, aquele ser invisível, desnecessário e problemático deveria há tempos estar encerrado num asilo do sistema de saúde ou no quarto dos fundos na casa de um familiar. Era um não-ser, uma não-pessoa, alguém que só servia para denegrir o sistema e abalar a confiança do leitor no futuro da humanidade.

Nas redações, meros reflexos distorcidos da realidade, ninguém quer saber de pedintes com discursos criativos. Dentre as “minorias”, os mendigos são os que têm menos defensores. Os chefes dizem que a culpa não é dos jornais nem de ninguém, ora, a vida é assim mesmo, é uma imposição dos anunciantes que querem distância de seres fracassados ou eventos desastrados. Na mídia atual, os miseráveis e perdedores aparecem apenas no caso justificado de terem sido bastante ricos ou poderosos. Os chefes também dizem que isto é uma exigência dos leitores otimistas e distraídos diante de suas telinhas, estes modernos leitores-bebês com chocalhos coloridos e barulhentos nas mãos.

Contrariado, mas resignado, penso: “Mesmo se aprovassem, ninguém escreveria algo que prestasse sobre ele e suas frases sinceras, belas e inúteis. Talvez nem mesmo eu…” Sentindo-me um míope sem óculos na hora decisiva, uma testemunha incômoda que lança mais dúvidas do que esclarece detalhes sobre a cena do crime, me afasto ao som da última sentença do mendigo, que, à semelhança das anteriores, ecoa na praça como uma maldição e fica suspensa sobre a noite: “O olho cego da lua também merece justiça!”

Deixo a praça onde, já foi dito, todas as almas se igualam e se parecem, inclusive as dos pedintes e imperadores. Na escadaria que leva ao metrô, penso nos destinos trágicos de Maiakóvski e daquele homem entrelaçados pelo acaso na minha odisseia cotidiana. A exemplo do poeta russo, na certa o mendigo morrerá ilhado diante do público, cercado de silêncios e ausências por todos os lados.

Dedicado a George Orwell, que na primeira fase de sua carreira, quando ainda assinava os trabalhos como Eric Blair, conviveu com mendigos e sem-teto em albergues e hospitais para indigentes em Londres e Lancashire. As experiências geraram os livros “Na Pior em Paris e Londres” (1933) e “O Caminho para Wigan Pier” (1937). No Brasil, os livros saíram pela Cia. das Letras, assim como outros escritos sobre o tema em “Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios” (2011).