“O Som ao Redor” é o Brasil acontecendo

“O Som ao Redor” é o Brasil acontecendo

“O Som ao Re­dor” poderia também se cha­mar “I­ma­gens ao Redor”. Ou, simplesmente, “Brasil”. Em sua estreia na ficção de longa metragem, o pernambucano Kleber Mendonça Filho prova que nem todo crítico é um frustrado em relação ao que critica — máxima que, na verdade, é uma daquelas bobagens que se tornam “sabedoria popular”.

Pelo contrário, sua experiência como analista parece só enriquecer seu trabalho, iniciado com curtas, ampliado com a experiência de um documentário (“Crítico”, de 2008) e que agora expõe uma Nação inteira de forma crua e límpida reproduzida em uma rua do Recife.

Mendonça, literalmente, tranca o Brasil em um quarteirão. Durante todo o filme, a não ser para uma viagem (um sonho?) de um personagem ao engenho do avô, não se tira fisicamente os pés daquele quadrilátero de um bairro de classe média da capital pernambucana — Setúbal, uma subdivisão de Boa Viagem em um trecho onde o mar encurta a faixa de areia da praia e a ressaca causada é forte.

E o mesmo Mendonça, metaforicamente, escancara o cerne da sociedade brasileira, com todos os seus ranços, fazendo a atualização do passado feudo-colonial em meio à modernidade. Por entre prédios, carros e eletroeletrônicos, são revisitadas instituições nacionais seculares como o patriarcado, o homem cordial, a casa grande e a senzala, o racismo de entrelinhas, o patrimonialismo. Deixa-se para trás o decadente engenho, que os novos rejeitam, mas as práticas antigas permanecem, confirmadas e redesenhadas pelo comportamento de cada personagem.

Uma vez que o enredo de início parece apontar para várias histórias em paralelo, a expectativa corre nesse sentido. Mas apenas duas delas vão conduzir o filme até o fim: a evolução da relação da estressada Bia (Maeve Jinkings) com o cão uivador do vizinho e as ações e reações ao serviço prestado pela equipe de segurança liderada por Clodoaldo (Irandhir Santos, em ótima atuação, diga-se) para os moradores da rua, a qual tem como proprietário de grande parte de seus imóveis Francisco (W. S. Solha), dono também de um engenho que deu origem à sua riqueza. Seu neto João (Gustavo Jahn), cujo romance com Sofia (Irma Brown) parece em princípio ocupar o centro da história, cumpre o papel de cicerone na trama, apresentando alguns dos principais personagens — a namorada roubada, a empregada bonachona, o tio saudosista, o avô poderoso, o primo delinquente, o segurança prestativo. Como o “coelho” (nome dado ao atleta que puxa o ritmo) das corridas de longa distância, João comanda o enredo para depois entregá-lo aos protagonistas de fato e sair do foco.

Basicamente em todos os personagens estão a preocupação com a segurança, a utilização de tecnologias audiovisuais diversas e a relação com a infância/adolescência, inclusive a própria. Por isso, da mesma forma que se divide em três partes — “Cães de guarda”, “Guardas noturnos” e “Guarda-costas” —, “O Som ao Redor” pode ser também observado a partir dessas três presenças recorrentes: grades, aparelhos eletrônicos e crianças.

Emblematicamente, o filme começa com fotos em preto e branco de um ambiente rural do Nordeste do início do século passado. A primeira delas é de uma porteira fechada, que, não por acaso, amarra-se perfeitamente com a última palavra expressa na história: “cerca”. Durante as mais de duas horas de filme são pelo menos 48 cenas em que grades aparecem com destaque, muitas vezes em primeiro plano. É um dos elementos que se firmam para significar tudo o que de claustrofóbico e limitador aparece como componente arquitetônico no filme: são paredes decadentes, parapeitos altos, corredores estreitos, portas fechadas, porões abandonados, ruas escuras, uma piscina vazia. E tudo parece estar cercado e assim, de certa forma, vigiado. Até um gato, animal cuja agilidade única supera muros e cercas, aparece aprisionado em cena, numa minúscula gaiola de transporte.

Muita engenhoca se apresenta, como pede a classe média. Do telefone celular ao laptop, do pequeno monitor à TV de 40 polegadas, do binóculo ao radioamador, do ultrassom anticães à máquina de lavar, aparatos diversos se apresentam durante as duas horas de filme para mostrar como a vida de cada um pode ser esmiuçada a partir da imagem e do som: o porteiro que é flagrado pela filmadora do garoto dormindo durante o trabalho é o mesmo que espia pelo circuito interno os beijos do casal de namorados no elevador; uma diferença de oito polegadas entre uma TV e outra é o ponto de partida (ou seria a gota d’água?) para a briga entre duas vizinhas; um vídeo no celular mostrando o assassinato de um colega ajuda o chefe da equipe de segurança a instruir seus subordinados. Iro­nicamente, a única “tela” que é diminuída é a do cinema, abandonado e fantasmagórico.

É entremeando toda a história que surge a evocação da infância, um veio mais hermético do leque de riquezas de interpretações possíveis que a película abre. Há crianças em abundância. São duas que abrem a primeira cena do filme e se juntam a outras na quadra do condomínio, sob o olhar de empregadas; são duas delas também que confortam a mãe à beira de um ataque de nervos; é para uma delas, a neta do poderoso Francisco, a única festa do enredo; é uma delas, negra, seminua e excluída, que se intromete como um vulto perigoso demais para aquele mundo de classe média.

Quando as reminiscências de Anco (Lula Terra) — filho de Francisco que tem um Gurgel e que conta ao sobrinho João como reencontrou a namorada que teve em 1981 — imaginam a rua de sua infância, sem pavimentação e com carros de quatro décadas atrás observa-se que os adultos querem buscar algo que ficou para trás. Sofia visita a casa que a abrigou quando menina e toca os recortes de uma constelação que pregara no teto de seu quarto, que em breve estará demolido para dar lugar a um novo prédio. É o passado perdendo espaço para um futuro incerto. Um futuro incerto que causa medo instintivo; um medo instintivo que pede proteção ostensiva; e a proteção ostensiva que aniquila de vez o passado, fechando um ciclo nada virtuoso.

Um modo surpreendente de volta à infância marca a última cena do filme: é a novidade invadindo o lugar do que é velho e o destronando. “O Som ao Redor” acaba se revelando, ao mesmo tempo e de forma magistral, a denotação e a conotação da dinâmica de um país. É o relato e a paráfrase do relato. É o Brasil sendo, acontecendo.

O cotidiano, por ele mesmo

Em outras obras do cinema brasileiro contemporâneo, notadamente o de Pernambuco, o espectador também é posicionado como integrante da cena. Mas em “O Som ao Redor” a característica aparece, pela câmera de Kleber Mendonça Filho, de forma plena: propositadamente, os diálogos ocorrem sem a menor capa de interpretação; são factíveis, corriqueiros e até ininteligíveis a quem faça questão de captá-los. É como prestar atenção a uma conversa de terceiros na esquina ou à mesa, ou como descer o elevador acompanhado de desconhecidos em silêncio — o que é expressado no filme como um ruído por vezes ensurdecedor. “O Som ao Redor” é, literalmente, o som ao redor.

Marca da “trilha sonora”, os ruídos comandam. Até as duas solitárias músicas que chegam aos ouvidos da plateia vêm do aparelho de som de Bia, que primeiro ouve “Crazy Little Thing Called Love”, com a banda Queen, e “Charles Anjo 45”, interpretada por Caetano Veloso na cena, candidata a simbolizar o filme, em que é massageada no sofá pelo casal de filhos — em tempo, a música composta por Jorge Ben dá uma pista sobre o desfecho da outra trama da história. Fora isso, há muito ritmo, coros, risadas, sons diversos e diversificados, como de praxe na cena urbana. Mas não melodias.

Entre as poucas críticas negativas que recebeu, uma é especialmente injusta: a que aponta para uma suposta lentidão do filme. Primeiramente, por provir de um argumento que deixa subentendido que seria preciso mais “dinâmica” para o êxito no cinema — nada mais descaradamente hollywoodiano. Mais importante é perceber que a crítica é ainda mais inviável se fizer referência a alguma monotonia: apesar de o enredo não ter absolutamente nada que não pudesse ocorrer na rotina e na intimidade de qualquer pessoa comum (até mesmo, por que não?, o ritual de fumar maconha disfarçado pelo aspirador de pó que vira exaustor), a expressividade e sensibilidade com que tudo é tratado se torna um dos maiores méritos da obra.

Retrato do Brasil

Incômodo observar como a cena da reunião de condomínio é negativamente brasileiríssima: há o síndico que quer pôr fim logo à sessão, a senhora que apoia a demissão do porteiro porque a “Veja” chegou-lhe fora do plástico, o condômino que disfarça sua indiscrição em forma de prestatividade e o sujeito “do contra” que sai antes de terminar a assembleia porque tem outros compromissos. “O mineiro só é solidário no câncer”, já dizia Nelson Rodrigues, colocando palavras na boca do amigo Otto Lara Resende.

Na história toda, o “jeitinho” brasileiro também mostra sua cara multifacetada: o pequeno traficante se faz entregador de água para passar a droga; a dona de casa resolve a sexualidade que não tem com o marido “traindo-o” com a lavadora de roupas; a diarista leva as netas para o apartamento do patrão porque a filha tem um compromisso; a inquilina em potencial que se aproveita de um suicídio para tentar ganhar desconto no aluguel; a empregada diz que vai à lavanderia e assim garante o álibi para uma transa durante o expediente; e, por fim, a vizinhança encontra a solução contra a violência em um serviço amador de segurança privada. Exemplos do “homem cordial” descrito por Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”.

Se o autor de “Raízes do Brasil” encontra guarida na obra de Mendonça, mais ainda a obtém outro expoente das ciências sociais no Brasil: Gilberto Freyre, pernambucano como o cineasta. Frases do filme como “Chegou na minha rua sem pedir licença”, dita com sorriso aberto por Francisco ao segurança Clodoaldo; “O quarto da empregada é com janela”, do corretor João ao apresentar um apartamento à cliente; e “Esse orelhão aí não é de favela”, quando o playboy Dinho vai intimidar a equipe de vigilantes, mostram o desespero da casa grande para controlar sua iminente invasão pela senzala, sempre um motivo de pesadelos — e eles aparecem, no filme — para quem tem algo a perder.

Custo de bagatela, valor como o de “Lincoln”

Polissemias e simbologias várias emergem de “O Som ao Redor” e mostram o talento de Kleber Men­donça Filho, mais um representante da ótima geração de cineastas de Pernambuco, que tem também Cláudio Assis (“Amarelo Manga”, “Febre do Rato” e “Baixio das Bestas”), Lírio Ferreira (“Baile Perfumado” e “Árido Movie”), Pau­lo Caldas (também “Baile Per­fumado” e “Deserto Feliz”) e Mar­celo Gomes (“Cinema, Aspirinas e Urubus”). Os olhos mais interessados podem vasculhar a internet para se esbaldar de interpretações as mais diversas sobre o filme.

Interessante é que, apesar de só agora chegar ao circuito no interior do País, “O Som ao Redor” não é propriamente uma novidade. Antes de os cinéfilos brasileiros — e nossa cultura cinematográfica o faz um filme de cinéfilos — o terem assistido, ele foi premiado em quatro festivais na Europa e um dos Estados Unidos. Foi também aclamado pelo respeitado crítico de cinema do “New York Times”, A. O. Scott, como o 9º melhor filme de 2012 em uma seleta lista de dez, ao lado de superproduções como “Lincoln”, de Steven Spielberg, e “Django Livre”, de Quentin Tarantino. Não é pouca coisa para algo que custou R$ 1,8 milhão, enquanto “Lincoln” só saiu do forno depois de consumir R$ 132 milhões (US$ 65 milhões) e ainda gastará dezenas de milhões de dólares com marketing.

Reavaliando a obra a partir das cifras, percebe-se como o longa-metragem de estreia de Mendonça na ficção, é um filme maduro ou, melhor, maturado: o roteiro data de 2008, o que teoricamente deu-lhe o prazo de quatro anos para lapidar a obra. O resultado que se vê demonstra que o tempo foi muito bem aproveitado. Antes de chegar a “O Som ao Redor”, o cineasta também dirigiu ótimos curtas — cinco, entre eles “Vinil Verde” (2004) e “Ele­tro­domésticas” (2005) e “Recife Frio” (2009) — e um bem avaliado documentário, “Crítico”, em 2008.

A inventividade de Kleber Men­donça Filho foi resgatada por ele também para o lançamento de sua obra no circuito do Recife, no início do ano: o cineasta usou um carro de som para, em meio a agradecimentos a aos moradores de Setúbal, convidá-los para ir ao cinema ver o filme que foi produzido no bairro. O resultado, disponível no You­Tube, foi uma peça de vídeo de dois minutos que mesclou cenas do “making of” da obra à divulgação nas ruas. Genial e oportuna metalinguagem. Um curta sobre o longa. Se não perder o foco, “O Som ao Redor” é só o começo: Mendonça ainda deve fazer muito barulho no cinema nacional.