Visceral e inebriante: suspense da Netflix vai te deixar tão tenso que você vai querer gritar Divulgação / Netflix

Visceral e inebriante: suspense da Netflix vai te deixar tão tenso que você vai querer gritar

A alegoria da paranoia que rapidamente se transforma em terror, refletindo a repressão de uma sociedade sufocada pela censura, vigilância rígida e desvalorização da educação e cultura, pode ser uma tarefa ingrata, muitas vezes falhando em educar ou entreter. “À Sombra do Medo” consegue realizar esses objetivos, evitando clichês comuns em temas políticos e íntimos de uma família pequena.

Shideh, uma ex-estudante de medicina impedida de continuar seus estudos por um burocrata, simboliza o Irã “moderno”: reacionário e conservador, mergulhado em misoginia e obscurantismo. Participante das manifestações contra a ascensão do aiatolá Ruhollah Khomeini, Shideh sofre as consequências de seu envolvimento. De volta à rotina doméstica, seu sofrimento, uma mistura de frustração e revolta, é evidente na atuação de Narges Rashidi.

O desejo de liberdade é um dos bens mais preciosos para o ser humano. Mas o que fazer quando esse sonho se torna inalcançável? Em 1980, o Irã enfrentava um momento particular, após quase quatro décadas de governo autocrático de Mohammed Reza Pahlavi. O xá, auxiliado pela Segunda Guerra Mundial, assumiu o trono após a renúncia de seu pai devido à invasão do Irã por tropas soviéticas e britânicas.

 A monarquia iraniana adotou políticas que obsolesceram a economia, incluindo a nacionalização das companhias petrolíferas, causando pânico nos investidores globais. Mohammed Mossadegh, primeiro-ministro democraticamente eleito, foi derrubado em uma operação apoiada pelos EUA e Reino Unido. Cansado de tanta interferência, o povo iraniano também derrubou Pahlavi, contrariando os planos ocidentais para a região.

O Oriente Médio parece destinado a se libertar de regimes personalistas, muitas vezes liderados por psicopatas que desdenham seu próprio povo e desviam milhões para paraísos fiscais, apenas para cair nas mãos de teocratas fanáticos. Esses líderes, longe de protegerem seus cidadãos, são os primeiros a usar a violência e a repressão em nome de princípios morais religiosos. O Irã foi pioneiro em usar o medo como ferramenta de controle social, seguido por Iraque, Líbia e Afeganistão. O medo é um excelente gestor.

A agonia de Shideh é exacerbada pela convivência com seu marido Iraj, um médico estabelecido cuja presença ela gradualmente passa a temer. Apesar de amá-lo, é impossível para Shideh aceitar que ele, que se omitiu durante a breve insurreição e se afastou das discussões sobre o futuro do país, tem uma carreira e uma razão para viver, enquanto ela não tem. Com a Revolução Iraniana veio a Guerra Irã-Iraque, e Iraj é convocado, deixando Shideh e sua filha Dorsa sozinhas.

Shideh está cercada. Embora temporariamente aliviada do desconforto de seu casamento, ela ainda tem a responsabilidade com sua filha. A maternidade não é um papel que todas as mulheres desejam ou estão preparadas para assumir, especialmente em sociedades teocráticas que não oferecem opções. Dorsa, personificando o desconforto de sua família, começa a apresentar patologias sociais e psiquiátricas.

A jovem atriz Avin Manshadi encanta o público, apesar das limitações impostas pelo ambiente e pela trama. O relacionamento entre Shideh e Dorsa, que era harmonioso, está agora à beira do colapso. Dorsa, isolada e solitária, transfere seus sentimentos para sua boneca Kimia, que desaparece misteriosamente, supostamente levada por djins, como descrito no Alcorão.

A atmosfera de “À Sombra do Medo” é gradualmente construída e bem fundamentada, relacionando-se aos conflitos armados entre Irã e Iraque. Os eventos paranormais se intensificam após a queda de um míssil no prédio de Shideh, simbolizando a maldição que a atinge. O filme utiliza a escuridão e a agilidade da câmera para capturar as reações sutis da protagonista, conferindo à história a subjetividade necessária.

O islamismo, uma religião com aspectos altamente fetichistas, ao mesmo tempo endeusa e amaldiçoa a mulher, tornando-a refém de seus caprichos sob a promessa de segurança e liberdade paradoxal. O véu, símbolo dessa ideia, é usado pelos djins para impor sua presença. Numa das sequências finais, Shideh sonha com um imenso véu preto e branco dominando seu apartamento e sua vida. Enquanto recupera a boneca de Dorsa, o livro de medicina dado por sua mãe permanece trancado, simbolizando sua própria existência.

Em menos de hora e meia, o filme de Anvari se revela profético. “À Sombra do Medo” celebra a especulação intelectual ao expor realidades nebulosas e oferece uma reflexão profunda, ainda que o papel do cinema não seja fornecer soluções. Os djins são apenas uma pequena parte dos problemas enfrentados no islamismo.


Filme: À Sombra do Medo
Direção: Babak Anvari
Ano: 2016
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 9/10