O melhor suspense da Netflix que vai te prender e surpreender até a última cena Divulgação / Netflix

O melhor suspense da Netflix que vai te prender e surpreender até a última cena

A natureza humana é marcada por uma dualidade inescapável, composta de luzes e sombras, recantos e saliências, escarpas e abismos. Esta complexidade muitas vezes nos impede de explorar plenamente nosso interior, seja por medo dos demônios internos que encontraremos — refletindo nossos próprios traços —, seja pela falsa segurança de acreditar que jamais precisaremos revisitar os antigos erros que preferimos manter ocultos. Esse espaço nebuloso abriga as barreiras que erguemos para nos proteger da curiosidade alheia, muitas vezes destrutiva, enquanto aguardamos, quase resignados, o momento em que essas mesmas barreiras nos engolirão em situações de cerco absoluto.

Nessas ocasiões, parece que a força do pensamento nos transporta para um universo paralelo, uma terra mágica e perigosa governada por um soberano cruel, ao qual devemos prestar contas de todas as nossas emoções, especialmente as mais mesquinhas; de todos os nossos planos, sobretudo os mais desprezíveis; e de todas as nossas vontades, inclusive aquelas que nunca se concretizaram.

Neste movimento contínuo, quando já não conseguimos nos controlar, surge uma espiral de perigos e ameaças que transcendem o mundo físico. A vida começa a se assemelhar a um sonho, ou mais precisamente, a um pesadelo cada vez mais realista, onde as memórias que nos atormentam, as representações diárias de infelicidade e as lembranças de um passado sombriamente violento se agarram ao que resta de nossa razão, um tesouro de valor ainda mais inestimável diante de alucinações de todas as espécies.

Em tempos em que ansiamos por heróis e heroínas que possam nos oferecer a salvação desejada, descobrimos que somos vítimas de um enredo diabólico que nós mesmos criamos, cujo desfecho, evidentemente, não pode ser feliz. Oriol Paulo, cineasta espanhol, tem habilidade em construir narrativas que fazem o público questionar o que está absorvendo da história, tamanha a atmosfera de mistério que ele emprega em seus filmes. Em seu recente lançamento, “As Linhas Tortas de Deus”, Paulo não hesita em utilizar sua vasta gama de controvérsias, todas habilmente embrulhadas em uma trama bem conduzida e ancorada na performance de uma das grandes estrelas do cinema hispânico atual.

Há uma conexão entre Alice Gould e Laura Vidal, protagonistas interpretadas por Bárbara Lennie em “As Linhas Tortas de Deus” e “Um Contratempo” (2016), talvez o thriller mais envolvente de Paulo até agora. No entanto, o que realmente as une é sua singularidade. O roteiro de Paulo, juntamente com Guillem Clua e Lara Sendim, mantém a riqueza descritiva do livro de Torcuato Luca de Tena, mas também se esforça, com sucesso, para tornar a narrativa mais fluida, mérito em grande parte da atuação de Lennie, conhecida por seu talento mais instintivo do que técnico.

 O domínio que Lennie demonstra sobre sua personagem é hipnotizante; ela interpreta uma detetive tão empenhada em resolver um homicídio que se interna no manicômio onde a história se desenrola. À medida que a trama se desenvolve, fica claro que nem tudo o que se vê corresponde ao que o filme quer transmitir, uma jogada de rara perspicácia do diretor. Isso nos remete, com algumas adaptações, ao personagem de Leonardo DiCaprio em “Ilha do Medo” (2010), dirigido por Martin Scorsese.

 Este é um dos pontos fracos do trabalho de Paulo: quando Alice adentra o território do transtorno de múltiplas personalidades, é impossível não lembrar da atuação de DiCaprio. No entanto, é importante ressaltar que Lennie consegue imprimir sua marca na personagem, conferindo muita personalidade a essa mulher, que no fundo é uma grande vítima de si mesma, uma linha torta onde Deus, sempre infalível, deposita seus toques de imperfeição.


Filme: As Linhas Tortas de Deus
Direção: Oriol Paulo
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Mistério
Nota: 8/10