Na década de 1920, revistas feitas com polpa de celulose ganharam popularidade ao redor do mundo com histórias que combinavam elementos de noir, fantasia e ficção científica com cenas de intensa violência, limitada apenas pela qualidade do papel barato. Essas publicações, conhecidas como pulp fiction, influenciaram profundamente Quentin Tarantino, que usou essa referência no título de seu primeiro grande filme, um conjunto de personagens diabólicos onde ele refinou a estranheza previamente demonstrada em “My Best Friend’s Birthday” (1987), o curta-metragem que ele escreveu, dirigiu e estrelou. Esse filme inaugural foi o primeiro de um acervo notável pela sua excelência, riqueza de detalhes e um prazer incontrolável em provocar desconforto moral genuíno — ao menos até que a pipoca acabe e as luzes do cinema voltem.
“Pulp Fiction”, que Tarantino subtitula como “tempo de violência” (embora não fosse necessário), é um golpe impactante. Raramente na história das manifestações artísticas se conseguiu, de uma só vez, abalar significativamente o paradigma do que estava sendo produzido nos estúdios. Limitando o recorte ao século 20, “Pulp Fiction” continua a oferecer lições valiosas à nova geração de cineastas que busca reinventar tudo, mas muitas vezes não consegue nem organizar seu próprio espaço.
A estrutura cíclica e dinâmica do texto de Tarantino e Roger Avary poderia facilmente se tornar uma tragédia em mãos menos habilidosas, mas o diretor sabe como capturar a atenção do público em cada sequência. Pumpkin e Honey Bunny, os dois criminosos que passam minutos intermináveis planejando um assalto ao diner onde estão tomando café, tecem considerações quase shakespeareanas (e hilárias) sobre a oportunidade de seu ato, preparando o espectador para tudo que está por vir ao longo de mais de duas horas e meia. Tarantino já começa a inovar aqui, não apenas na disposição narrativa, mas também no desenvolvimento dos personagens.
De alguma forma, os outros cinco personagens emergem desse embate moral inicial de Tim Roth e Amanda Plummer. O enredo se aprofunda verdadeiramente a partir daí. Nada do que é dito é gratuito, e talvez esta seja a obra onde Tarantino mais utiliza as falas de seus personagens para expressar suas próprias ideias. Muito além de sua estética irrepreensível e kitsch, “Pulp Fiction” é uma celebração do diálogo, o verdadeiro fio condutor da história, como se vê logo em seguida, quando Jules Winnfield e Vincent Vega, os “pintores de parede” da máfia, interpretados magistralmente por Samuel L. Jackson e John Travolta, procuram a maleta que ainda é alvo de teorias conspiratórias, trinta anos depois.
A interação no apartamento onde o trio de criminosos está escondido é um lembrete de que este é um filme que não poupa ninguém; antes de entrarem, os dois capangas, vestidos elegantemente, discutem longamente sobre se Mia Wallace foi infiel ou apenas imprudente ao permitir que um homem que não seu marido lhe massageasse os pés, preparando o terreno para outro momento crucial.
Uma Thurman domina o segundo e terceiro atos, sendo especialmente lembrada pela cena em que Mia, sofrendo uma overdose acidental, é salva por uma injeção de adrenalina no peito, administrada por Lance, seu traficante, interpretado por Eric Stoltz. A amizade cada vez mais próxima entre os personagens de Thurman e Travolta é a tensão subjacente em “Pulp Fiction”, contrastando com o uso episódico de Ving Rhames, que aparece esporadicamente para resolver lacunas narrativas. A maneira como Tarantino encerra o filme, trazendo de volta os dois assaltantes do prólogo, realça o caráter farsesco da trama de maneira quase genial. “Pulp Fiction” é um exemplo claro de um filme que pode ter inúmeras interpretações, cada vez revelando algo novo. Como todo clássico, é sempre uma experiência única em cada revisão.
Filme: Pulp Fiction — Tempo de Violência
Direção: Quentin Tarantino
Ano: 1994
Gêneros: Drama/Thriller/Noir
Nota: 9/10