Quanta amargura pode se esconder nas sombras de uma megalópole gélida, sob a pele de gente endurecida pelo rancor, pelo medo, pela indiferença, por traumas que se arrastam, se multiplicam e se perpetuam? “O Espelho Tem Duas Faces”, o título cafona da boa comédia romântica de Barbra Streisand, se esforça por responder essa pergunta, sem, no entanto, resistir a ceder a maneirismos que empobrecem um tanto o resultado final.
Streisand, já uma estrela de primeira magnitude quando do lançamento do filme, em 15 de novembro de 1996, leva o roteiro de Richard LaGravenese, adaptação do trabalho homônimo de André Cayatte (1909-1989) levado à tela em 15 de outubro de 1958, para um melodrama com os providenciais toques de humor à George Bernard Shaw (1856-1950) com que a atriz pincela os momentos de tensão da história, zigue-zague semântico que segura o interesse do público por um caso de amor que não decola, justamente o eixo em torno do qual o enredo se move.
Rose Morgan, a professora de literatura a que Streisand dá vida com convicção, parece resignada com a vida de solteira até que a vida começa a lhe dar sinais de que talvez seja uma boa ideia procurar seu novo amor com mais calma. O gatilho é disparado pelo casamento de Claire, a irmã bonita encarnada por Mimi Rogers, com Alex, o quarentão à prova de bala de Pierce Brosnan, e Rose passa a ficar mais atenta às presenças masculinas que rondam-na, mas só identifica Barry, o nerd boa-praça, mas desenxabido, interpretado por Austin Pendleton, como um possível candidato a companheiro.
Com a interferência de Claire, um dos episódios mais divertidos do filme, Rose conhece Gregory Larkin, um matemático naturalmente propenso a estabelecer métodos e teorias para tudo, e, por mais evidentes que as diferenças se mostrassem, eles se aproximam, subestimando a regra tácita e elementar de sempre ouvir a intuição — sobretudo em temas dessa ordem.
Quase cartesianamente, Streisand brilha na introdução enquanto Jeff Bridges encarrega-se do restante do longa. Seu entendimento de Larkin, um solteirão esquisito que decide transferir seu celibato patológico para o casamento com Rose, destoa muito do que se esperava de um filme à primeira vista ligeiro como esse — e caso se pense nos tipos de virilidade matadora que caem tão bem a Bridges, a exemplo do Rooster Cogburn da releitura de Ethan e Joel Coen, em 2010, para “Bravura Indômita”, o clássico dirigido por Henry Hathaway (1898-1985) e protagonizado por John Wayne (1907-1979) em 1969, chega-se a duvidar se é de fato a mesma pessoa.
O sensaborão Larkin é pouco mais que uma caricatura do sujeito indeciso, imaturo, como se em busca de um tempo perdido que não sabe onde pode resgatar, misturando Proust a, outra vez, Shaw, numa espécie de “Pigmalião” (1913) em que faz as vezes não de Henry Higgins, mas de Eliza Doolittle. Em tempos de masculinidade tóxica, o risco de homens como Gregory Larkin virarem o novo padrão de macheza para este insano século 21 é bastante considerável.
Filme: O Espelho Tem Duas Faces
Direção: Barbra Streisand
Ano: 1996
Gêneros: Comédia/Romance/Drama
Nota: 8/10