Ganhador de 10 prêmios, o melhor filme indiano de 2023 acaba de estrear na Netflix Divulgação / Vinod Chopra Films

Ganhador de 10 prêmios, o melhor filme indiano de 2023 acaba de estrear na Netflix

Honestidade é artigo cada vez mais difícil de ser encontrado nas gôndolas das consciências mundo afora, e há quem defenda que, a partir do momento em que ser íntegro ameaça privilégios e pode custar aumentos de salário, promoções, benesses de toda ordem, é não só conveniente, mas de bom tom abdicar de certos pruridos morais. Vidhu Vinod Chopra tem intimidade com o assunto, e dispõe de boa parte dos clichês para apresentar os descaminhos de um homem de bem em “Repetente”, a história romanceada de um personagem real assumidamente fantasiosa, mas nunca absurda.

Com “Munna Bhai M.B.B.S.” (2003) e “3 Idiotas” (2009), com Rajkumar Hirani, Chopra, um dos cineastas mais expressivos de Bollywood, já havia demonstrado uma certa preocupação com a falta de critérios, para dizer o mínimo, no que respeita à vontade bestial de subir, misturada à urgência de crescer também em espírito. Seu filme mais recente insiste que todos somos presenteados com muitas chances de exaltar nossos atributos; cabe a nós, então, decidir se o fazemos com parâmetros aceitáveis ou não.

O capitalismo é um sistema cheio de particularidades e de injustiças. Da mesma forma que fomenta oportunidades de ascensão social a indivíduos alijados pela própria vida das mínimas condições de desenvolvimento, sem um trabalho digno ou instrução formal que os ajude a consegui-lo, morando em choupanas de palafita ou de pau a pique sem abastecimento de água tratada, vendo o esgoto correr de porta em porta levando as moléstias que adoecem e matam seus filhos como há mais de quinhentos anos, o capitalismo, porque conduzido de maneira cruelmente equivocada, não manifesta por essas pessoas a menor compaixão, perpetuando um ciclo de miséria e abandono que não interessa a ninguém.

Quanto mais populoso o país, mais visíveis essas desigualdades se tornam, como se gente fosse uma praga alastrando-se sem controle sobre um campo outrora produtivo, sempre à mercê da intervenção divina para voltar aos tempos de bonança. O problema é que Deus não toma parte nesses assuntos diretamente, uma vez que outorga ao homem a competência de os resolver. O que nos remete ao começo da discussão e nos autoriza a dizer que uma elite beócia, parasita e míope têm um interesse mórbido quanto a fazer a certas injustiças perdurarem, sem compreender o mais elementar: uma sociedade baseada na manutenção da pobreza da maioria para que uma minoria iníqua siga com sua bolha de privilégios cultiva a fera do ódio, cuja única razão de existir passa a ser preparar o bote.

Numa comunidade remota em Chambal, centro-norte da Índia, Manoj Kumar Sharma tenta deixar a vida miserável que o cerca por todos os lados. Ele aspira a tomar parte no concurso que seleciona agentes de polícia para o trabalho de campo nas cercanias do povoado, mas o dinheiro nunca é o bastante. O exemplo do único policial decente que conhece serve-lhe de inspiração para que não desista, confirmando sua forte intuição de que seu grande sonho há de virar realidade um dia, e o diretor vai moldando esse primeiro arco de modo a aproximar o espectador desse protagonista aparentemente linear, plano, sem todas aquelas nuanças efervescentes tão própria dos heróis. 

Chopra e os corroteiristas Jaskunwar Kohli e Anurag Pathak vão conduzindo a trama da zona rural de uma Índia pouco divulgada para o caos de Mukherjee Nagar, bairro no norte de Nova Délhi, onde se baseia a Comissão de Serviço Público da União, que escolhe os cadetes dos Serviços Civis Centrais, administrados pelo Departamento de Pessoal e Treinamento. Esses oficiais são os responsáveis pelas atividades de inteligência do governo indiano, e numa manobra ousada, o diretor constrói a reviravolta que explica por que Manoj vai parar lá — além das tais doze reprovações de que fala o título —, com Vikrant Massey seguro diante de cenas que remetem a um “O Tigre Branco” (2021), o cultuado thriller de Ramin Bahrani, muito menos agressivo.


Filme: Repetente
Direção: Vidhu Vinod Chopra 
Ano: 2023
Gêneros: Drama 
Nota: 8/10