Histórias protagonizadas com lindas mulheres que se revelam feras implacáveis, cuja natureza assassina se esconde sob uma pele bem-tratada, cabelos sedosos e maquiagem provocante ou arrebatam o público logo de cara, apelando aos atributos físicos dessas musas diabólicas para chegar a seus dramas existenciais, ou degringolam em xaropadas que perdem-se em meio a ideias megalômanas de reviravoltas artificiosas que não chegam jamais a lugar nenhum.
“Anna — O Perigo Tem Nome” oscila entre esses dois polos com equilíbrio cartesiano, característica fundamental de um cineasta que atira petiscos que levam a audiência à direção oposta para a qual deveria ir, enquanto deixa seu lado manipulador extravasar no roteiro. Besson amalgama um par de suas protagonistas mais marcantes (e mais controversas) para compor uma terceira anti-heroína com cujo nome batiza outro grande filme. Encontram-se em Anna Poliatova, a garota malvada da vez, traços de Lucy, a mocinha seviciada que se vinga de seus malfeitores no longa homônimo lançado em 28 de agosto de 2014, e Mathilda, a pirralha assustadiça que se torna a menina dos olhos do sicário pós-moderno de “O Profissional” (1994). Mas Anna é única.
Numa feira de rua de Moscou, Anna vende matrioscas, as famosas bonequinhas em cujo interior se escondem outras ainda, menores, mas igualmente encantadoras, o que não deixa de ser uma maneira engenhosa de Besson prevenir o espectador quanto ao que pode sair da moça. Ela é descoberta pelo olheiro de uma renomada agência de modelos francesa, e ainda que hesite um pouco, uma vez que estuda biologia na Universidade Estatal, aceita o convite do homem.
A partir daí, o diretor encadeia cenas em que Anna, uma personagem aparentemente banal fortalecida pelo carisma magnético de Sasha Luss, surge desbravando o mundo pantanoso da alta moda, desde o caótico apartamento em que vai morar no 7º arrondissement, nas cercanias da Torre Eiffel, junto com outras dez aspirantes a top model, até o primeiro ensaio, ao som da contagiante “Pump Up the Jam” (1989), do Technotronic, que não acaba muito bem. Não se fica sabendo se chega a cair nas graças de Mario Conti, como lhe haviam prometido; o que importa mesmo é a volta que o enredo dá a fim de explicar como Anna se metamorfoseia de manequim de luxo para pistoleira de aluguel, e sua primeira encomenda é justamente um magnata seu patrício, que o texto de Besson revela ser um traficante de armas subvencionado pela CIA, o serviço de inteligência externa dos Estados Unidos.
Um longo flashback mostra Anna presa de um namorado abusivo e criminoso, com o qual se envolve num episódio de extorsão que quase lhe custa uma temporada na cadeia. Ela é salva por Alex, um agente da KGB que, escarafunchando seus registros, descobre que ela já foi fuzileira naval, joga xadrez como poucos e tem uma memória privilegiada, sobretudo para citações inteiras de Dostoiévski. Anna e Alex, interpretado por Luke Evans, vivem um tórrido caso de amor — muito da parte dele, que se diga —, o que é determinante para seja contratada por Olga, a diretora moscovita do Comitê de Segurança do Estado.
A entrada de Helen Mirren na trama conduz “Anna — O Perigo Tem Nome” para o andamento policial que deixa o filme cada vez mais sedutor, até a cena em que Olga, sentada à mesa com as imagens de Vladimir Ilyich Ulianov (1870-1924), ou Lênin para os íntimos, e Leon Trótski (1879-1940) ao fundo, surpreendentemente, cumpre uma antiga promessa e apaga os arquivos que poderiam implicar no sumiço daquela que passou a considerar uma filha. Afinal, velhas serpentes soviéticas também sabem reconhecer quando são derrotadas.
Filme: Anna — O Perigo Tem Nome
Direção: Luc Besson
Ano: 2019
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 9/10