O filme mais esperado de 2024 acaba de chegar à Netflix e conta uma das histórias reais mais perturbadoras do cinema Quim Vives / Netflix

O filme mais esperado de 2024 acaba de chegar à Netflix e conta uma das histórias reais mais perturbadoras do cinema

Como se poderia imaginar, “A Sociedade da Neve” não tem novidade alguma. Nada no filme do espanhol J.A. Bayona justificaria desencavar o acidente do voo 571 da Força Aérea Uruguaia, em 13 de outubro de 1972, de que resultaram 29 mortos nas circunstâncias mais violentas e perversas e dezesseis sobreviventes, perdidos num trecho isolado e gélido da Cordilheira dos Andes, no oeste da Argentina, por cerca de dois meses e meio.

Contudo, a riqueza de detalhes e, o principal, o apelo estético do trabalho de Bayona, que orienta o diretor de fotografia Pedro Luque Briozzo Scu a carregar nas tintas do desespero e retratar a neve e os rostos daqueles homens em aflitivos tons de azul, num contraste inescapável e igualmente melancólico com o branco estourado sol invernal de locações nos Andes e na região espanhola de Sierra Nevada, dão novo fôlego à história, bem como, por óbvio, os enquadramentos macabramente intimistas, a poucos centímetros das bocas laceradas pelo vento enregelante quase todo o tempo.

O texto, do diretor, Nicolás Casariego Córdoba, Jaime Marques-Olearraga e Bernat Vilaplana, baseado no livro homônimo do jornalista uruguaio Pablo Vierci, publicado em 2009 e cheio de intermediações diretas de quem viu a cara da morte e voltou para contar, goste-se ou não, recaptura o frescor de um episódio que se julgava enterrado para sempre. Mas os mortos ainda têm o que dizer.

Fica difícil de acreditar, mas todos os que foram colhidos pelo desastre tinham uma vida, e como Frank Marshall já havia feito em “Vivos” (1993), Bayona dedica um bom pedaço de “A Sociedade da Neve” a registrar a vida daquelas pessoas antes de suas existências flertarem com a morte. A partida de rúgbi disputada pelo Old Christians Club, uma pequena equipe universitária do bairro Carrasco de Montevidéu, revela suas verdadeiras personalidades, e o impulsivo capitão Roberto Canessa, de Matías Recalt, lidera os colegas e se faz uma voz altiva quanto a manter o jogo sob controle. Porém, depois de caído o avião, quem assume as rédeas do grupo é Numa Turcatti (1947-1972), com Enzo Vogrincic dando vida a um personagem que vai se livrando de amarras emocionais e se torna a consciência crítica de quem tem de dormir, acordar, respirar o ar rarefeito da montanha e sentir a neve rasgar-lhe a carne que se mistura aos ossos pensando em algum jeito mirabolante de vencer as 24 horas seguintes.

Numa é um dos primeiros a fenecer, pesando menos de 25 quilos, justamente por se recusar a ingerir os despojos de quem não resistira ao impacto da queda, tema, da mesma forma que no filme de há três décadas, negligenciado por Bayona. Essa discussão continua rendendo tamanho desconforto que a solução encontrada pelo diretor para abafar a polêmica foi colocá-lo como um uma espécie de oráculo, a uma entidade à qual os vivos se reportam sem muita convicção, e desconfiados de que o espírito de Numa reserva-lhes uma merecida ponta de desprezo.

O esperado resgate acontece somente no 72º dia, sem que a edição acelerada de Jaume Marti e Andrés Gil, essencial na sequência em que a aeronave colide com a rocha e começa a se esfacelar, perca relevância. Tem início então uma outra agonia, a de mortos-vivos esqueléticos, maltrapilhos, malcheirosos e ulcerados obrigados a voltar ao mundo real em seus detalhes mais comezinhos, se reacostumando ao chuveiro, a refeições quentes e, o mais importante, à procura dos familiares, entre aliviados e incrédulos. Numa Turcatti não teve direito a nada disso, mas decerto não carrega na alma o horror de ter vencido a morte às custas da própria salvação. 


Filme: A Sociedade da Neve
Direção: J.A. Bayona
Ano: 2023
Gêneros: Thriller/Aventura/Drama 
Nota: 8/10