Drama avassalador acaba de chegar na Netflix e vai mudar a forma como você vê a vida Divulgação / Kang Quintus Films

Drama avassalador acaba de chegar na Netflix e vai mudar a forma como você vê a vida

A África conserva sua natureza mística em detalhes invisíveis aos outros povos, e deve-se também a isso a estreia de filmes como “Nganu”, em que Kang Quintus se debruça sobre uma forma muito peculiar de masculinidade, que por seu turno não deixa de remeter a deficiências estruturais de dadas concepções de mundo, que demandam uma análise quanto à ineficácia da civilização, que, lamentavelmente, ainda não chegou a todas as terras do globo neste nosso insano século 21. Um dos grandes artistas africanos de sua geração, Quintus vem acumulando experiências memoráveis como ator, a exemplo do que se aprecia de seu trabalho em “O Diário do Pescador” (2020), o drama em que Enah Johnscott louva a coragem de uma menina que enfrenta o pai para levar adiante os estudos. Ali, talvez já se vislumbrasse onde Quintus desejava mesmo chegar: uma crônica que esquadrinhasse o comportamento dos homens nas situações, cada vez mais frequentes, em que precisam engolir o tolo orgulho viril e admitir que os tempos, enfim, mudaram.

O diretor reproduz a história real de uma família massacrada pela violência, pela ignorância, pelo machismo. Já na primeira cena, o personagem-título espanca a mulher sem se importar que Kum, o filho, assista a tudo, entre apavorado e paralisado de medo, sem conseguir esboçar reação, quiçá pensando numa oportunidade para fugir, para clamar por ajuda, mas continua estático, observando tudo, quadro que se repete por outras três vezes ainda na introdução, como se Quintus tivesse o propósito claro de persuadir o espectador do horror e da urgência do assunto. Musing Daniels é a síntese perfeita de uma infância insegura, desprotegida, que tem de aprender desde muito cedo a contar apenas consigo mesma, com sua capacidade de apreender o horror de uma realidade particularmente bestial e usá-lo como matéria-prima ou para a revolução que se faz mais fundamental a cada dia ou para a incorporação desses métodos hediondos de autoafirmação e progresso com dia e hora para descair em barbárie. 

Com seus claros e escuros bem pronunciados, a fotografia de Takong Delvis ambienta o público no mais abjeto e lírico da trama. Nas sequências em que Nganu surra a esposa, performance corajosa de Muriel Blanche, a tela se apaga quase por inteiro, reluzindo ao fogo aqui e ali a pele dos atores. Quando a repulsa da noite dá lugar à transparência da luz do sol, surgem no quadro o verde brilhante da selva, exatamente como também acontece em “Beasts of No Nation”, o belo filme de Cary Fukunaga com o qual “Nganu” apresenta umas tantas interseções. Como Agu, o protagonista do longa de 2015, Kum cresce abandonado e nutrindo pelo pai a ira que desemboca em crimes inomináveis. Aqui, diferentemente do que se dá com o drama de guerra de Fukunaga, o garoto encontra a morte depois de ter seu reencontro com seu algoz de sangue, com espaço também para a reconciliação de Nganu consigo mesmo.


Filme: Nganu
Direção: Kang Quintus
Ano: 2023
Gêneros: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.