Na Netflix, o filme mais subestimado de 2023 John Wilson / Netflix

Na Netflix, o filme mais subestimado de 2023

Atores talentosos sentem-se no direito (e alguns mesmo na obrigação) de ousar — felizmente. Que outro predicado além da aptidão no modo de conduzir o próprio ofício, dando preferência a trabalhos considerados por muitos críticos como simples birra diante do pretenso desprezo de um diretor ou de um estúdio num filme de maior alcance, sem dúvida, mas exasperantemente análogo a tantos outros, pode justificar o arriscado juízo de bancar a vontade irresistível de mudança, de aperfeiçoamento, de dar ainda mais pulsão a uma carreira que navega em mares de bonança? Resta envolta em sombras a causa que levou Idris Elba a ser rejeitado, depois de convite público e algo ostensivo, para o papel do espião mais famoso do cinema, mas de acordo com o que se tem em “Luther: O Cair da Noite”, Elba não acusou o golpe. James Bond cede espaço a John Luther num drama que nunca descai para o óbvio e tampouco faz concessões ao entretenimento gratuito — apesar do vínculo umbilical ao programa de televisão, febre no Reino Unido no transcurso de uma década inteira.

A continuidade de “Luther” (2010-2019), a série criada por Neil Cross e exibida pela BBC One, a principal emissora da rede BBC, sob a forma de um longa de mais de duas horas dispõe do protagonista na pele de um homem torturado, anti-herói cheio de particularidades que mais o distanciam que o rebaixam à condição de simples objeto de paralelismos razoáveis com o tipo muito menos dramaticamente profundo criado por Ian Fleming (1908-1964).

O personagem-título do filme de Jamie Payne, um detetive numa quadra nada feliz da carreira, parece mesmo o espectro que o diretor quer fazer dele. Sempre muitos tons abaixo do temperamento eufórico que se poderia esperar de um mocinho numa trama congênere, Luther investiga o caso que minutos depois há de sacramentar o rumo de sua vida e seu desempenho profissional, para a pior. Enquanto isso, a edição de Justine Wright mostra na abertura um edifício vazio e iluminado, como se perdido na noite londrina, cenário essencial para que se sorva aos poucos a atmosfera noir proposta pelo roteiro de Cross. Intérprete a um só tempo vigoroso e delicado, Elba capta como poucos o sem fim de nuanças de seu personagem, mormente depois que Payne vai deslindando o crime de que Luther começa a se ocupar, um desaparecimento e uma suspeita de suicídio. A primeira das grandes viradas mostra o detetive no malogro profissional que traz a maior das humilhações para um sujeito como ele, momento em que troca o gasto sobretudo cinza por um uniforme de presidiário.

As cenas de Luther na cadeia, onde se mistura aos presos comuns — nunca é demais exortar o público a recorrer da licença poética —, vêm a lume encadeadas com as subtramas em que Cynthia Erivo ganha destaque como Odette Raine, uma policial cuja vida particular também é marcada por desbalanços emocionais que hão de terminar por levá-la a ter de solucionar o caso mais doloroso de sua vida. Elementos sensoriais inócuos a uma análise mais ligeira, como um telefone que insiste em tocar ou a veiculação em tela cheia da vinheta de um absurdo reality show, tentam manter o espectador em sintonia com tudo o mais de esdrúxulo que se desenrola no filme, episódios com a força dramatúrgica de uma matança no palacete de um nababo saudita, um incêndio de natureza tão incontrolável como esfíngico e um motim na prisão que custodia Luther.

O terceiro ato engendra um possível livramento para esse anti-herói cansado de guerra, frisando a atuação de Andy Serkis como David Robey, o assassino em série que espalha pânico e desordem na capital inglesa e tumultua a vida de John Luther. Assumidamente episódico, porém fluido, televisivo sem deixar de ser cinema, o trabalho de Jamie Payne diverte mesmo quem não têm compromisso lá tão sólido com as peripécias de galãs de outros tempos em narrativas datadas, mérito de Idris Elba, o homem que matou 007.


Filme: Luther: O Cair da Noite
Direção: Jamie Payne
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Crime 
Nota: 8/10