Na Netflix, um filme tão envolvente e sombrio que a pipoca será esquecida e o sofá se tornará palco de tensão Divulgação / IFC Films

Na Netflix, um filme tão envolvente e sombrio que a pipoca será esquecida e o sofá se tornará palco de tensão

Um homem segue sua vida da maneira mais singela possível, tentando superar traumas e esquecer os velhos rancores de um tempo aparentemente morto, mas essas questões mal resolvidas de seu passado, como sói acontecer, voltam a assombrá-lo. Escarafunchando as migalhas do que já fora um dia, ele, afinal, se reinventa, mas como sói acontecer na vida como ela é, seus fantasmas tornam a atormentá-lo, agora com muito mais força. O filme de Paul Solet entrega muito da história já no título, quando também faria muito mais sentido se manter o nome original.

Poder-se-ia definir “Passado Violento”, ou “Clean” (“limpo” na tradução literal) como o coming-of-age de um personagem já crescido, forçado a confrontar velhas questões que não só restam por serem dirimidas como estão ainda mais obscuras. O longa é, sob várias perspectivas, um ponto fora da curva. Malgrado conte com Solet por bom diretor, é o DNA do ator principal que mais se pronuncia aqui. Adrian Brody, eternizado como Władysław Szpilman, o pianista polonês acossado pelas tropas nazistas em Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mote do filme de Roman Polanski pelo qual venceu o Oscar de Melhor Ator de 2003 — o mais jovem premiado na categoria até hoje —, é também produtor, corroteirista e compositor da trilha do filme.

Nitidamente um projeto individual, afetivo, Brody precisou da assistência e do olhar crítico de Solet a fim de não deixar que ideias apenas razoáveis passassem como toques de gênio, e o responsável por “O Mistério de Grace” (2009), um dos melhores filmes de terror de todos os tempos — uma espécie de “O Bebê de Rosemary” (1968) sem as metáforas refinadas de Polanski —, decerto o brindou com seus pitacos mais certeiros. A afinidade dos dois, visível em “Alvo Triplo” (2017), garantiu que a nova empreitada de Brody não fosse um tiro no pé.

Em “Passado Violento”, o ator dá vida a Clean, um lixeiro cujo nome oficial nunca se fica sabendo. Brody consegue deixar transparecer a angústia de seu protagonista usando das expressões sóbrias que caracterizam seu trabalho, enriquecido pela fotografia de Zoran Popovic, que eleva ao limite a sensação de franco desnorteio carregando nos tons frios e escuros das noites de Utica, no coração do estado de Nova York. Tentando achar as respostas de que diz precisar tanto e sofrendo com o que define como um “infindável ataque de feiura” do mundo a sua volta — nesse ponto muito semelhante ao Travis Bickle de Robert De Niro em “Taxi Driver” (1976), de Martin Scorsese, um especialista em desenvolver tipos desse jaez —, Clean só deseja ganhar a vida de modo virtuoso, ainda que tratando com a imundície em estado bruto.

Esse passado de violência a que Solet e Brody aludem resta, da mesma forma, um tanto enigmático, enigmático demais, cabendo a quem assiste tirar conclusões as mais díspares entre si: todas, por evidente, nada elogiosas. Não obstante, Clean, o lixeiro hipster de Utica, ganha a confiança do público; as cenas em que remexe o lixo à cata das sobras de ferro que vende para Kurt, o comerciante de sucata de RZA, catapultam a história para um segundo ato, esse, sim, violento, em que o anti-herói de Brody renuncia a qualquer ilusão de um dia ser feliz e enfrenta Michael, o poderoso gângster local vivido por Glenn Fleshler. Tudo para resguardar a honra de Dianda, a enteada muito inconsequente vivida por Chandler Ari DuPont — outra charada à reta final da trama.


Filme: Passado Violento
Direção: Paul Solet
Ano: 2021
Gêneros: Mistério
Nota: 8/10