O filme mais assistido no Brasil na atualidade: a história mais brutal e perturbadora da Netflix Divulgação / Netflix

O filme mais assistido no Brasil na atualidade: a história mais brutal e perturbadora da Netflix

De tempos em tempos, o marasmo da civilização é agitado por eventos barbáros que, a um primeiro comentário, ninguém acredita que sejam possíveis. Depois da noite de 29 de março de 2008, nem a Vila Guilherme, um bairro de classe média na Zona Norte de São Paulo, nem o Brasil foram mais os mesmos. O documentário “Isabella: O Caso Nardoni” é mais uma das várias tentativas de se esclarecer o que teria acontecido entre as 23h e a meia-noite daquele sábado no sexto andar do número 138 da rua Santa Leocádia. Uma menina de cinco anos dava seus últimos suspiros no jardim da portaria do edifício London depois de, segundo uma enxurrada de versões desconexas, ter sido defenestrada do apartamento. Os diretores Cláudio Manoel e Micael Langer entrevistam os personagens centrais de um dos crimes mais perversos — e enigmáticos — da vasta crônica policial brasileira, sem conseguir alcançar qualquer nova conclusão ou, ao menos, jogar luz sobre por que Isabella teria sido morta. Ao cabo de mais de década e meia, uma única certeza, entretanto, deve continuar pontuando o raciocínio nem tão lógico das autoridades e de mulheres e homens dignos: Isabella Nardoni era inocente.

O roteiro de Cláudio Manoel, Langer — que assinam junto com Calvito Leal o parcialíssimo “Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei” (2009) — e Felipe Flexa abusa de uma linha cronológica bamba, que apesar de confundir quem já não se lembrava mais do caso (decerto uma ínfima parte da opinião pública) imprime agilidade e certa romanceação à história. Percebe-se o velado objetivo dos três em bater na tecla do desencontro de narrativas dos suspeitos, Alexandre Alves Nardoni e Anna Carolina Trotta Jatobá, pai e madrasta da criança, depois da visita da delegada Renata Pontes e dos peritos Sérgio Vieira e Rosângela Monteiro. A pouco e pouco, rui o castelo de sensos comuns e prudência, inclusive de Ana Carolina Oliveira, a mãe de Isabella, que na ocasião estava com amigos num churrasco. Se até o momento era quase forçoso acreditar que tudo fora mesmo uma lamentável e revoltante trapaça do destino, a apresentação de laudos que esmiuçavam detalhes do percurso de Isabella da garagem do prédio até o quarto de cuja janela caiu para a morte foi a sinistra reviravolta que culminou na prisão de Nardoni e Jatobá. O GPS do carro dirigido pelo pai de Isabella estivera desativado a partir das 23h36, quando de sua chegada com a esposa e os dois filhos do casal, à garagem do prédio, e havia gotas de sangue vindas de fora da residência, incompatíveis com a altura de Isabella (ou seja, ela fora carregada por alguém, provavelmente por Nardoni). Além disso, as marcas de esganadura no pescoço da menina indicavam ter sido feitas por alguém de unhas compridas, como eram as de Jatobá. Começava então uma batalha jurídico-midiática para averiguar quem havia feito o quê, operação que, infelizmente, passou a lembrar o argumento de “A Montanha dos Sete Abutres” (1951), dirigido por Billy Wilder (1906-2002). Um circo dos horrores de que todos queriam participar.

O mais saboroso no filme são mesmo as entrevistas com o corpo de profissionais implicados em aclarar e julgar e punir o homicídio. As declarações dos jornalistas Marcelo Godoy, de “O Estado de S. Paulo” —mais uma vez incansável na cobertura policial, como se vê em “3 Tonelada$ – Assalto ao Banco Central” (2022), de Rodrigo Astiz — e do promotor-celebridade Francisco Cembranelli simbolizam um e o outro lado da contenda entre o corpo da Justiça e a imprensa, disparando farpas quase invisíveis entre si. Ao fim de muita polêmica, Nardoni e Jatobá foram condenados a 31 anos, 1 mês e 10 dias e 26 anos e 8 meses de reclusão, cada, sem nunca terem confessado. A madrasta de Isabella cumpre pena em regime aberto. Ana Carolina Oliveira casou-se e é mãe de dois filhos, Miguel e Maria Fernanda.


Série: Isabella: O Caso Nardoni
Direção: Cláudio Manoel e Micael Langer
Ano: 2023
Gênero: Documentário
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.