O melhor filme da história do cinema, em 130 anos, está Netflix Divulgação / Paramount Pictures

O melhor filme da história do cinema, em 130 anos, está Netflix

Para o bem e para o mal, organizações que peitam o Estado e impõem sua própria lei, espalhando o terror por entre cidadãos honestos sempre despertaram verdadeiro fascínio em espectadores de todo o planeta, e não é de hoje. Por certo, a mais decisiva colaboração do cinema quanto a unir a história de um desses grupos um tanto metafísicos e sua implicação na gênese mesma de um povo, mormente numa quadra muito específica do século 20 seja “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola, em que o mundo toma ciência de um gângster que enverga ternos de grife como poucos, incorpora autoridade e prestígio para muito além de sua numerosa prole e consegue estender seus tentáculos por sobre um país inteiro. Naturalmente, essas quadrilhas, caracterizadas pelo insondável tino de associação para o alcance de metas epopeicas que beira a paranoia; truculência desmedida na condução de seus procedimentos; e uma inclemência orgânica para com aqueles que ousam ferir determinados códigos, são encontradas em qualquer parte do globo, do Japão à Colômbia, mas foi em terras italianas que o termo “máfia”, etimologicamente ligado à ideia de arrojo, de intrepidez, segundo um dialeto siciliano arcaico, se popularizou com mais força, sendo aplicado a partir de então para todas as situações em que se observa esse expediente. No primeiro dos quatro filmes, Coppola, muito bem amparado pelo roteiro escrito com Mario Puzo (1920-1999), autor do romance de que a caudalosa narrativa é expelida como se de um jato de denúncia e macabra beleza, estabelece tomos invisíveis e quase didáticos a fim de destrinchar uma saga grandiosa, alongada por quase três horas e outros três longas dispostos em cinquenta anos. Destarte, entende-se a razão de ser de uma das mais valiosas joias da cultura pop, nascida clássica por nunca perder o frescor.

Um homem que acredita na família, criada nos moldes americanos mais genuínos — e nisso entra, claro, muito mais que um punhado de dólares —, dirige-se a Vito Corleone, implorando por ajuda. Sua filha fora violentada pelo namorado e os amigos dele; o sujeito recorrera à polícia, instaurou-se uma averiguação, o caso foi a julgamento e no fim os agressores saíram pela porta da frente, largando o miserável pai em incontido desconsolo. Aparentemente simplória, essa é a cena que poderia resumir tudo o que se vê ao longo de cinco décadas nas quatro produções (que cansam aqui e ali, sem perder relevo): o tal homem é compadre de Don Corleone, mas alega não o ter procurado antes que as autoridades porque não queria amofiná-lo com imbróglios tão enroscados. O velho mafioso, por evidente, mata a charada logo, e lhe diz à queima roupa que, na verdade, o amigo tinha medo de dever favores a ele, armadilha de que o outro, já assustado, não consegue escapar. Teme-se pelo pior, a memorável trilha de Nino Rota (1911-1979) emite seus acordes mais graves, e sabe-se, afinal, que Don Corleone vai atendê-lo, esclarecendo que pode mesmo cobrar a dívida no tempo e nas condições que só cabe a ele precisar. Se até aquele momento essas duas figuras, nefastas cada qual a seu modo, ocupavam lugares equivalentes, agora o desditoso pai que só pretendia resgatar a honra de uma filha ultrajada é mais um dos inúmeros afilhados do Poderoso Chefão, feliz tradução livre do original, embora não seja conveniente perder de vista essa ideia de apadrinhamento, axial em toda a narrativa, da mesma forma que o próprio escritório do sátrapa, mostrado pela excelente fotografia de Gordon Willis (1931-2014) como um tugúrio, um esconderijo e um abatedouro, especialmente das que julgam-se inabaláveis.

Majestoso, o patriarca eternizado por Marlon Brando (1924-2004) vem e vai na trama, cedendo espaço, sobretudo nos lances mais desabridamente acelerados e brutais, para Al Pacino, encaminhamento por meio do qual Coppola confere a seu filme, malgrado não se possa dizer que já com essa intenção, para a aura de épico contemporâneo, com destaque para o segmento em que Michael, o terceiro dos quatro filhos de Don Corleone, despacha-se para Itália escapando de uma sentença de morte. Mulherengo inveterado, Mike desposa Appolonia Vitelli, a camponesa vivida por Simonetta Stefanelli, mas quando volta à América, reata com Kay, a WASP bem-nascida de uma Diane Keaton em nada parecida com a mulher formosa que é ainda hoje. Não obstante, conforme já se disse, Brando permaneça sobranceiro, feito se admirasse o desdobrar dos acontecimentos ao longe — postura muito diferente da do coronel Walter E. Kurtz de “Apocalypse Now” (1979) —, o grande personagem do prólogo da tetralogia é mesmo o playboy composto por Pacino. O massacre do batismo, um dos derradeiros eventos de “O Poderoso Chefão”, consagra Mike como “o” sucessor de Don Corleone, merecendo com louvor fechar a saga, de um jeito nada previsível, pleno de meandros éticos e pruridos de consciência. Em “O Poderoso Chefão: A Morte de Michael Corleone”, terminado em 2020, o personagem-título extravasa sua sensação de tormento diante do que foi obrigado a fazer de sua vida; da assunção ao trono com a morte do pai; do cerco cada vez mais inescapável da justiça dos Estados Unidos, ainda que tenha torrado alguns milhões de dólares em honorários de advogados influentes e para calar a consciência de promotores e juízes. Perfeccionista, preciosista, Coppola arremata (será?) dessa maneira seu tratado sobre a máfia italiana, comodamente refugiada nos subúrbios de Nova York na esteira da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e cujos próceres tornarem-se íntimos de celebridades que faziam questão de desdenhar do politicamente correto e de líderes políticos. Agora, Don Corleones e Michaels tornam-se donos também do poder que habita os palácios por todo o mundo.


Filme: O Poderoso Chefão
Direção: Francis Ford Coppola
Ano: 1972
Gênero: Crime/Drama
Nota: 10