O centro da cidade rescende à urina e saudade

O centro da cidade rescende à urina e saudade

Não havia shopping centers. A vida se resolvia no centro da cidade e parecia ser o bastante. Gostava de caminhar pelas calçadas abarrotadas de gente, pelo comércio pujante que vendia de-um-tudo, pelas bancas de revistas, pelos cachorros vira-latas engatados pelos genitais, pelo amontoado de bugigangas eletrônicas contrabandeadas do Paraguai.

Tinha os churros. Tinha a delícia dos churros. Tinha o cara que comprava ouro. Tinha o pastor que pescava almas sobre a plataforma do ônibus. Tinha o pivete que engraxava calçados por uma mixaria. Tinha o estelionatário que solicitava um minutinho da nossa atenção por favor. Tinha a mendiga com um naco de carne amarrado na canela, pedindo esmolas, pelo amor de Deus, para se tratar de um cancro na perna. Tinha o Mauricinho, um rapazola efeminado que se vestia de forma espalhafatosa para chocar os transeuntes, enquanto pedalava pelas ruas da cidade, carregando na cestinha da magrela um poodle pintado de rosa.

Passeava com a minha mãe e com os meus irmãos. Papai não. Papai gostava mesmo era de trabalhar, não se permitia ao ócio e aos prazeres. Ninguém largava a mão de ninguém, para evitar se perder no meio da chusma, ser raptado por ciganos ou levado por um maníaco invisível, o temerário Homem-do-Saco. Comíamos pizza de mozarela — imaginem só — numa lanchonete que funcionava dentro das Lojas Americanas. Ainda guardo na memória o aroma do queijo derretido, das rodelas de tomate maduro e duma chuva de orégano que transformava aquela iguaria numa obra de arte que quase dava pena a gente comer.

Em frente à loja, tinha o tiozinho que vendia laranjas. Ele possuía uma daquelas engenhocas nas quais se fixava a laranja pelas extremidades, a fim de se obter um descasque simétrico, uniforme, por meio do giro continuado de uma manivela. No final das contas, a laranja terminava perfeitamente descascada, deixando longos fios amarelo-esverdeados que se desprendiam da geringonça para se amontoar sob a banca. Gostava de catar aqueles filetes fresquinhos que rescendiam a sumo, de colocá-los sobre a minha cabeça, como se fosse uma peruca, para divertir os meus irmãos. Crianças se encantam com bobagens e filigranas.

Por mais que o coração haja endurecido, certos sabores da infância jamais se perdem. Tornei-me um adulto ordinário, do tipo calvo assumido que não aderiu aos dispendiosos implantes capilares, muito menos, às dissimulações anatômicas pelo uso de perucas. As Americanas estão quebradas, é o que se diz por aí. O tiozinho que faturava horrores vendendo laranjas descascadas desapareceu do mapa urbano, levando na bagagem toda aquela montanha de cascas aromáticas que eram instrumento de fantasia. Mauricinho perdeu uma perna num acidente de trânsito e nunca mais pedalou pela cidade. Eu e meus irmãos raramente nos falamos. E mamãe ficou velha, muito velha, mas, não o suficiente para dissipar os temores pelo insidioso, pelo maléfico Homem-do-Saco, um pobre coitado que, ao contrário do que essa história conta, jamais existiu, senão na famigerada linha da miséria de que falam as estatísticas oficiais do Estado.