Pessoas que riem de tudo são mais livres

Pessoas que riem de tudo são mais livres

Nem tudo parece desejo e desespero. Eu respondi que não estava interessado em me divertir um pouquinho em troca de cinquenta pilas. Estava um calor infernal naquela tarde, portanto, fiz uma contraproposta. Ofereci a ela um picolé de groselha. Ao contrário do que vocês possam imaginar — e até desejar — , ela não mandou que eu o enfiasse no rabo. Sorriu sem economia, aceitou o mimo e as negociações de alcova morreram ainda no nascedouro.

Estávamos sentados no banco de um agitado parque da cidade. Tinha um monte de crianças correndo pra todo lado. Tudo parecia estranhamente feliz e promissor. Eu quis saber mais sobre ela. Contou-me que tinha 20; seu filho, 7. Nunca fui muito bom em matemática, mesmo assim, fiz a subtração de cabeça e concluí — bravo! — que ela dera à luz aos 13. Achei aquilo prematuro e triste. Ela riu da minha cara de besta. O corante de groselha deixava seu sorriso ainda mais rubro, vivo e encantador. Fiquei lamentando por que ela não procurava algo menos degradante para se manter viva no jogo. Ah, como somos estranhos…

Aquilo parecia um picolé de pinga, uma espécie de soro da verdade congelado, pois ela desatou a tagarelar sobre si mesma. Esse meu jeito de bom ouvinte, de “ombro amigo”, atrai muita gente complicada. Confessou, por exemplo, que nos anúncios classificados dos jornais fazia questão de ressaltar que, além de novata no ramo, era universitária — embora não fosse. Isso parecia atrair a atenção dos homens mais velhos como eu, foi o que ela disse. Puro marketing de guerrilha. Na impura vida real, abandonou a escola no quinto ano do ensino fundamental. Achei fundamental bisbilhotar mais sobre o seu passado e entender aquela história de maternidade aos 13 anos. “Foi rola de primo”, ela disse e quase rolou de rir no gramado. Não achei graça nenhuma. Era um comentário grosseiro.

Ela contou que não conhecia o pai nem por fotografia. Tinha dois irmãos, cada um deles de um reprodutor diferente. Certo dia, sua mãe acabou se apaixonando por um motoboy que propôs juntassem os trapos. Parecia, finalmente, uma boa possibilidade de ser feliz. Sem pensar muito, a mulher topou a provocação e foi comer sal no mesmo prato com o seu novo amor. Levou junto os três filhos: dois meninos e uma menina — a minha doce, extrovertida, extravagante interlocutora.

Quando foi morar com o padrasto, somava 12 anos. Não demorou muito, o sujeito tomou apreço desvirtuado por ela — “Carne nova na área, amigão” , era aquele tipo de homem que conversava com o próprio pênis — e cismou que precisava transar com ela o mais rápido possível, antes que outro espertinho o fizesse. Sentia muita atração pela enteada.

Quando percebeu que seria atacada pelo sujeito, juntou todo o seu patrimônio material, enfiou dentro de uma sacola de supermercado e vazou. A mãe ficou apavorada ao supor que algum maníaco tivesse raptado a filha. Então, rezou muito para Deus, chorou no ombro do canalha amado, e pediu que anunciassem o sumiço da menina na rádio e no alto-falante da igreja.

Foi morar na casa da avó materna, que já tinha rompido relações com a filha por causa da sua mania de fazer filhos em série com homens que não eram homens. A velhota era viúva, geniosa, sofria de premonições e morava com outro neto, um rapazote de vinte e tantos anos. Ninguém é perfeito, mesmo sendo uma avó com sexto sentido. Portanto, não previu o que sucederia debaixo do próprio teto e nariz. Demorou quase nada, o marmanjo ficou caidinho pela prima. Com muita simpatia, jeito e presentinhos, acabou traçando a menina antes mesmo que ela conseguisse soletrar “Brasil, Pátria Educadora”. Foi o prazo da menstruação sumir, o safardana também sumiu.

Ao notar que a neta andava barriguda além da conta, a senhorinha receou que se tratava de bolo de lombrigas ou um furioso cisto ovariano a crescer nas suas entranhas infantis. Achou aquilo danoso e a levou até um postinho de doenças da prefeitura, onde ouviu do médico cubano que a menina tinha entrado pelo cano, e que o tal cisto, na verdade, possuía braços, pernas e um ânus — nasceria antes das doze badaladas dos sinos no final daquele ano.

Enquanto contava, ia rindo muito das próprias mazelas e deixando respingar gotas de groselha na sua camiseta com os dizeres “Vai ter poesia”. Pra mim, sua reação não soava como desespero, mas sim, libertação. Lembrei-me do poema “Desejo”, do escritor francês Victor Hugo, e cheguei a inferir que ela fosse uma espécie de ser humano superior. Sua alegria superava meu entendimento. Certamente, eu não estava a sua altura. Havia muito brilho, graça e visgo naquele olhar. Era uma das criaturas mais fascinantes e livres com quem eu tinha conversado nos últimos tempos. Tanto assim que partiu voando do meu “ombro amigo”, dentro da tarde quente de domingo.