Notável e melancólico, novo filme da Netflix vai acalmar sua alma Alejandro López Pineda / Netflix

Notável e melancólico, novo filme da Netflix vai acalmar sua alma

O flagelo do mundo nos oprime, a vida passa, a juventude se vai abreviando, mas a infância, ah!, essa nunca tem fim. Resta em algum lugar, escondido no coração dos homens, um baú de de estrelas e de ossos do qual se tiram as lembranças de momentos bons e horas pálidas que, num prazo que só o tempo é capaz de definir, mudam-se também elas em recordações felizes. “O Último Vagão”, do mexicano Ernesto Contreras, leva o público por uma viagem cujo destino é tão incerto quanto a poesia revela-se a condutora mais diligente. Desde o princípio, nota-se o desejo de Contreras em explorar com sutileza imagens que servem como eficientes gatilhos quanto a fomentar no espectador a vontade de também procurar em si mesmo a estação onde há de reencontrar-se com a essência mais pura de sua natureza, no lugarzinho acolhedor e mágico que nos protege do veneno do existir.

O diretor utiliza-se bem da melancolia do roteiro de Ángeles Doñate e Javier Peñalosa, e ao mostrar uma menina correndo por uma ponte, só se nota sua tristeza sob a perspectiva de outra figura, deslocando-se muito à frente no velho trem de carga que um simpático vira-lata se esgota tentando alcançar. Ikal, o carismático protagonista de Kaarlo Isaac, parte, mas não para sempre, e essa ligeira analepse sustenta tudo o que vem depois. O personagem de Isaac, um garoto que vive em diversas cidadezinhas do interior do México ao longo do ano, não demora a se enturmar com as outras crianças, enfrentando perigos inventados e dramas menos oníricos, como o que dá azo à entrada em cena de Quetzal, o cachorro mencionado acima, presença mesmo obrigatória num filme assim, em circunstâncias bastante similares às usadas por Rob Reiner em “Conta Comigo” (1986). Pouco depois, Contreras explica o porquê da vida cigana de Ikal: o pai é operário da Ferrocarriles Nacionales de México, em franca ampliação da malha de trens por todo o país, atividade frenética que ocupou o expediente da companhia ao longo de sessenta anos, entre 1938 e 1998. Naturalmente, a aventura teria um custo, e quem arca com o custo do altruísmo é a esposa, mãe do garoto, piorando a olhos vistos da tuberculose que acaba por matá-la.

Doñate e Peñalosa alongam-se pela vertente do drama social, mas em frentes diversas e graus distintos. A educação, tão precarizada no México como em qualquer outro país da América Latina, vem a lume na pele de Georgina, a velha mestra de Adriana Barraza, resistindo o quanto pode à velhice solitária e a mágoas quase inconfessáveis. Barraza, como sua personagem também uma destemida veterana, tão versátil de que salta por entre diferentes papéis no transcurso da carreira brilhante sem se fazer notar, recobra o gosto pela vida ao descobrir em Ikal, semianalfabeto aos dez anos, a urgência da superação. A subtrama do circo, o lugar onde todos somos o que quisermos, com uma mágica meio fescenina e um travesti que lança facas em cima de um homem, conduz a narrativa para o desfecho em que o protagonista se metamorfoseia num homem culto, mas torna a viver onde pode ser o que de fato deseja. Exatamente como Georgina.


Filme: O Último Vagão
Direção: Ernesto Contreras
Ano: 2023
Gênero: Drama
Nota: 8/10