Todos chegamos a um momento na vida em que os aniversários tornam-se cada vez mais próximos uns dos outros, não se consegue brecha para uma consulta de rotina e nem mesmo o que de fato importa — e, o principal, quem de fato importa — cabe na agenda, embora não saia da lembrança e muito menos do coração. Certeiro como sempre, David Fincher expõe em “Vidas em Jogo” algumas de suas elucubrações acerca da violência surda da vida, que mói sonhos com toda a placidez. Quando nos damos conta, passaram-se séculos numa única tarde, começa outro dia, outro mês, outro ano e outro mais, e só então vem a certeza de que já não temos o consolo da dúvida: o hoje é tudo quanto nos resta.
A obsessão de Nicholas Van Orton chega às raias da loucura. O homem poderoso e solitário vivido por Michael Douglas, outra de suas grandes composições nessa categoria, parece congelado num tempo morto, e a exibição de imagens envelhecidas com o uso de um projetor, dão uma pálida medida do quão infeliz é. O cuidadoso design de produção de Jeffrey Beecroft atenta para detalhes que passam despercebidos em meio ao ramerrão de se fazer tudo igual sempre, no rádio ouvem-se por duas vezes notícias do sobe e desce da Bolsa, e ainda assim Nicholas se mantém impávido. Ele desce do carro, com muita pressa, entra no edifício que leva o nome da família, desembarca no andar do escritório e começa a tratar de um tal caso envolvendo uma certa marca de bebidas, não sem algum desgosto. Dentre as pessoas que o procuram, uma diz-lhe alguma coisa, mas só remotamente. Elizabeth, a ex-mulher interpretada pela suíça Anna Katarina, é só uma das inúmeras pistas falsas de que se vale o roteiro de John Brancato e Michael Ferris a fim de distrair a audiência, cabendo a um outro personagem desembalar o mote central do enredo.
O onze de outubro em que o anti-herói de Douglas completa 48 anos — vivendo sozinho na mansão onde seu pai cometera suicídio com a mesma idade —, é um pouco menos melancólico graças a uma visita tão inaudita quanto suspeita. Conrad, o irmão caçula, oferece-lhe uma surpresa (algo que Nicholas odeia) envolvendo um tal Serviço de Recreação ao Consumidor, que ele quase rejeita. Mas sua rotina precisa tanto de qualquer contratempo que o faça ter a certeza de que continua vivo que, depois disso, Sean Penn desaparece — até a sequência final, quando volta para reafirmar o que todos passamos a saber a respeito do mais velho dos Von Orton — e este filme adquire a natureza de uma mistura bem dosada de “Wall Street — Poder e Cobiça” (1987), dirigido por Oliver Stone, e “Um Dia de Fúria” (1993), de Joel Schumacher (1939-2020), sem prejuízo da originalidade de Fincher, marca registrada de seu ótimo trabalho.
Filme: Vidas em Jogo
Direção: David Fincher
Ano: 1997
Gêneros: Thriller/Mistério/Drama
Nota: 9/10