A vida é um filme em que o amor não morre no final

A vida é um filme em que o amor não morre no final

Com licença, senhora. Verificação dos sinais vitais. Tenha uma boa noite.

Aproveitou que a enfermeira de origem sudanesa tinha saído do quarto para descalçar os sapatinhos de camurça e começar os preparativos de se aninhar ao lado da companheira. A foto dependurada na parede mostrava o rosto de uma mulher caucasiana, jovial e de expressão serena, com o dedo indicador em riste, encostado na ponta do nariz, a solicitar silêncio no ambiente.

Este ambiente não está sendo filmado, pensou. Então, realizou os procedimentos da forma mais silenciosa que conseguiu. Afinal, era também uma septuagenária com os quartos travados, as juntas ruidosas e a suã danificada pelas ferrugens do tempo. Redobrou cuidados para não derrubar as almotolias, para não enganchar alguma parte do corpo no equipo de soro ou nalgum dos incontáveis cabos que ligavam o corpo combalido da moribunda aos aparelhos de última geração. Pertenciam a uma geração de mulheres que tinha queimado sutiãs nas ruas e apanhado da polícia durante inumeráveis passeatas pelo retorno da democracia ao país. Era óbvio que tinha valido a pena lutar, mas, agora, havia ali outros buxixos da morte no encalço delas.

O ambiente estava à meia luz. Apenas os displays multicoloridos dos equipamentos piscavam insolentes na mudez da escuridão. Era alta madrugada. Certamente, estava infringindo os regulamentos daquela instituição hospitalar, ao se deitar à paisana no leito de uma paciente comatosa. Mesmo assim, não se sentiu nem um pouco melindrada. Podia ser — isso os boletins médicos nunca diziam — a última oportunidade de abarcar o corpo da mulher amada, de sentir aquele calor particular que não era o mesmo calor de outros tempos, quando moraram juntas no feioso casarão Art Déco situado na esquina da Pegasus com a Cavalo-de-Asas.

A enferma idosa estava deitada de costas, mantendo o semblante congelado dos últimos dias. Nenhuma ruga de medo, de dor ou de angústia desde o último aporte cavalar de coices-de-morfina. Por razões meramente técnicas, não conseguiu se aconchegar da forma que pretendia. Então, se aninhou como dava para se aninhar sobre o corpo consumido da esposa, tomando o cuidado de não travar a sua respiração ou de quebrar alguma costela com se fosse um graveto. Pousou a cabeça com suave saudade sobre o seu peito silente que subia e descia sob os comandos sonsos de um fole automatizado. Cruzou o braço fofo na altura do abdome escavado pelas pás-da-fome de uma neoplasia malvada em estágio patológico avançadíssimo.

Uma salva de alarmes soou em uníssono dentro do quarto triste. O calor continuava arrefecendo. Pensou em pedir mais um cobertor, mas, seria rapidamente desmascarada pelas enfermeiras migrantes. A vida derretia apressada. Previa-se, para as próximas horas, a chegada de uma frente fria que assoprava dos gélidos pulmões das cordilheiras do norte em direção ao coração do condado; um fenômeno natural, previsível e bruto que poderia culminar, em alguns casos, na morte por hipotermia dos indivíduos menos avisados.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.