Grandiloquente à primeira vista, “O Céu da Meia-Noite”, o épico de ficção científica dirigido por George Clooney se detém sobre coisas simples, ordinárias até, mas sem as quais não se pode viver. Clooney se inspirara no romance da escritora americana Lily Brooks-Dalton, publicado em 2016 pela Random House, e faz questão de marcar seu trabalho com passagens em que verifica-se muito do niilismo de “2001 — Uma Odisseia no Espaço” (1968), clássico dos clássicos do gênero, levado à tela por Stanley Kubrick (1928-1999); da melancolia de “Gravidade” (2013), de Alfonso Cuarón; da sofisticação de “Interestelar” (2014), de Christopher Nolan; e, voltando à geosfera, mas preservando a aura de aventura de autorrevelação e catarse coletiva, do realismo assustador de “O Regresso” (2015), de Alejandro González Iñárritu. Clooney parece querer arrastar seu filme para um caos autodestrutivo que o fará entrar em parafuso, mas ajudado pela memória afetiva que o espectador tem das produções que o balizam, o longa do diretor-protagonista sai por cima, valendo-se de maneira assumida, sim, dessas referências, mas também preconizando a ousadia de assumir sua própria identidade.
Augustine Lofthouse, o personagem de Clooney, é o arquétipo do cientista maluco, mas está anos-luz mais perto da lucidez possível que qualquer outro homem, coisa que se tornou rara na Terra, planeta fustigado por um evento apocalíptico qualquer — não resta claro se se trata de uma peste pandêmica, como que a assolou o planeta com força incontrolável entre março de 2020 e dezembro de 2021 (e ainda faz das suas), ou uma Terceira Guerra Mundial, assunto que anda pelas cabeças e pelas bocas desde a eclosão dos conflitos russo-ucranianos, em 24 de fevereiro de 2022, evidência macabra de que a humanidade, de uma ou de outra forma, é um caso perdido, e essa é só uma questão de tempo. Por tudo isso, Lofthouse não deixa a Estação Meteorológica de Lake Hazan, no Círculo Polar Ártico, mas o roteiro de Clooney e Mark L. Smith insinua que o herói sucumbe a uma doença terminal, câncer talvez. A ficção científica de fundo teor policial, a exemplo de “O Exterminador do Futuro” (1984), dirigido por James Cameron, e Blade Runner 2049 (2017), de Denis Villeneuve, também deixa suas pegadas na história, uma vez que, como vai se notar do meio para o encerramento, “O Céu da Meia-noite” toma forma num tempo distante, cenário da mais acerba distopia que reflete as atrocidades cometidas no presente. Lofthouse quer avisar os integrantes do Aether, o ônibus espacial que leva os tripulantes da última missão mandada ao espaço pela NASA, a agência especial americana, que voltem para o planeta em que haviam se radicado, já que a Terra está condenada, mas um problema na conexão o impede. Assim, ele corre contra o relógio a fim de evitar que rompam a atmosfera terrestre outra vez, e sua missão tem tudo para ser um retumbante fracasso já que a estação fica a muitas milhas de distância, num território mais isolado do Ártico. A súbita aparição de Iris, de Caoilinn Springall, a garota autista esquecida quando da evacuação, o deixa especialmente perturbado.
Clooney faz seu filme oscilar entre dois núcleos, dividindo “O Céu da Meia-Noite” no tomo que narra a jornada de Lofthouse e Iris ao longo da imensidão de neve do Ártico e o deslocamento da espaçonave guiada por Tom, vivido por David Oyelowo, marido da astronauta Sully Rembshire, a chefe da expedição interpretada por Felicity Jones, que espera uma filha dele, e os dois são colegas de Maya, de Tiffany Boone; Sanchez, de Demian Bichir; e Mitchell, papel de Kyle Chandler. Barrigas no roteiro, como o total desconhecimento de Sully e sua equipe quanto às atuais condições de vida na Terra, são contornados com desembaraço pelo diretor, que brinca com o argumento a ponto de sugerir a necessidade de se refundar o gênero humano, com Tom e Sully como o Adão e a Eva intergalácticos. A fotografia do premiado Martin Ruhe se esmera nas sequências que retratam o espaço, mas obtém resultados satisfatórios apenas sob a perspectiva tecnológica: falta no trabalho de Ruhe um quezinho de drama a mais, malgrado um evento funesto com um dos membros da tripulação dê ao filme o vigor de que está sempre carecendo. Por outro lado, as cenas rodadas no gelo do Ártico são bem mais quentes, inclusive do ponto de vista estético, até porque não necessitam de tanto investimento em efeitos especiais e, destarte, permitem que os atores se mostrem com mais naturalidade, como são de fato. O roteiro resvala para a controvérsia mais desabrida quando Lofthouse, que no princípio se contorcia, vítima de acessos de tosse, surge atravessando a lâmina de gelo de um lago e passa longos minutos submerso, o que não poderia dar em outro fim senão numa crise de hipotermia ou num choque anafilático, na melhor das hipóteses. Nada que um intérprete carismático não seja capaz de resolver.
É desse jeito que a história chega ao fim, saudando a estupidez humana por meio de um texto inventivo, personificado por atores afinados entre si — especialmente Clooney e a pequena Springall — e a trilha envolvente de Alexandre Desplat, agressiva e poética. Escusado dizer que, em quem assistiu ao filme no cinema, ficam lembranças muito mais vívidas; no entanto, “O Céu da Meia-Noite” merece ser apreciado, seja como for, e mais de uma vez. Como diretor, George Clooney é um ator muito bom, mas diante das câmeras ou a sua retaguarda, o coração do público balança por ele. Cinema é isso também.
Filme: O Céu da Meia-Noite
Direção: George Clooney
Ano: 2020
Gêneros: Ficção científica/Drama/Suspense
Nota: 8/10