Suspense da Netflix te manterá na ponta da cadeira e não te deixará piscar por 104 minutos Andreas Bastiansen / Netflix

Suspense da Netflix te manterá na ponta da cadeira e não te deixará piscar por 104 minutos

A dinamarquesa Barbara Rothenborg fora capaz de condensar em boa medida o melhor dos mestres da literatura numa história cheia de altos e baixos ao falar de um casamento que deveria ter chegado ao fim, mas que ao se prolongar indefinidamente — alicerçado na areia fina da vaidade e da hipocrisia — implica um cenário de desabrida loucura. Trata-se de “Um Marido Fiel” (2022), drama com notas de suspense em que a ânsia pela verdade se sobrepõe à verdade em si. O roteiro de Anders Rønnow Klarlund e Jacob Weinreich centra a história na figura de um casal aparentemente acima de qualquer suspeita, aparentemente apaixonado, aparentemente feliz e aparentemente normal. Como se vê, as aparências não só não enganam como podem ser um componente fundamental na vida de duas pessoas que escolhem viver juntas, constituir uma família e enfrentar as vicissitudes da vida como ela é. Rothenborg explora bem os pequenos, ínfimos sinais que explicariam a nuvem de paranoia que flutua sobre Christian e Leonora, quarenta e poucos anos e um filho, Johan, dezoito, recém-saído de um grave problema de saúde e prestes a se formar no ensino médio.

Os personagens de Dar Salim e Sonja Richter terminam de educar Johan, de Milo Campanale, na casa construída sob medida à beira lago, permeada por um bosque denso. Nem poderia ser de outra forma, uma vez que Christian é um dos mais bem-sucedidos arquitetos do mercado, e muito de sua excelente reputação profissional se deve a Xenia, a arquiteta-assistente vivida por Sus Wilkins, com quem mantém um caso sólido. A vida do trio — não há muito a se especular acerca de Johan — conservar-se-ia numa paz de cemitério não fosse o imprevisto que sucede nos bastidores da festa que a empresa de Christian oferece para comemorar um negócio importante, gancho para todos os eventos trágicos que passam a se desenrolar na história.

Amantes povoam o inconsciente coletivo há muito tempo, de certo modo inspirando artistas, pensadores e, especialmente, o cidadão comum a também nutrir suas ilusões de casamento perfeito — pelo menos aos olhos da sociedade — com um espaço amplíssimo para vivências extraconjugais que ao cabo de um tempo mais ou menos breve deixam pelo caminho uma fieira de egos cheios, corações destroçados, mágoas inexpugnáveis de parte a parte e não raro filhos desassistidos que, tomados pelo desespero, optam por decisões sem volta. Decerto a primeira história de um amor desditoso a capturar o público no contrapé, sem muita ideia do êxito que iria alcançar foi “Anna Kariênina” (1877), do novelista russo Liev Tolstói (1828-1910). Tão popular quanto acerbo, o caso fictício entre a protagonista, Anna Kariênina, mulher de Alieksiéi Kariênin, alto comissário do czar Alexandre II, com o Conde Vronsky, oficial da cavalaria, foi um escândalo junto à aristocracia da Rússia imperial. Anna pede o divórcio, mas Kariênin, além de não aquiescer, ainda a impede de ver o filho. O casamento, claro, termina mesmo assim, bem como o caso extraconjugal e o fim da anti-heroína é o pior possível. Homem com os dois pés muito bem fincados na realidade, Tolstói jamais imaginara ter escrito um dos enredos de amor vívido, desamor oculto e ódio manifesto mais longevos de todos os tempos, levado às telas cinco vezes, entre 1935 e 2012, com toda a justiça. Muito mais dado à louvação de seus pares e da audiência, o alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) — escritor, poeta, diretor de teatro, crítico cultural, um generalista por natureza — conseguiu exprimir muito (mas não tudo) do abatimento de espírito do personagem central de “Os Sofrimentos do Jovem Werther” (1774), desiludido, cônscio da impossibilidade de seu amor por Charlotte, prometida em matrimônio a Albert. Talvez não existam dois homens de letras mais díspares entre si que Tolstói e Goethe, gênios no mesmo ofício, donos de trajetórias longevas (ambos morreram com a mesma idade, 82 anos, um assombro tanto no século 18 do germânico como no 19, atravessado pelo russo) e bem-sucedidas, mas que enxergavam o amor — e por óbvio a vida ela mesma — por prismas diametralmente opostos. E exatamente por essa razão, complementares.

Conscientemente ou não, a diretora emula a narrativa comum a Tolstói e Goethe e trabalha bem a psicopatia da dupla de protagonistas, oferecendo a Wilkins farto material para que também sua personagem, uma coadjuvante que cresce além do esperado, mostre a que veio. Numa análise precipitada, tudo leva a crer que Xenia seja de fato a grande vilã do filme, como Leonora insinua, mas causa espécie o jeito como Klarlund e Weinreich subvertem os papéis, revelando aos poucos quem é quem, momento em que a insânia da personagem de Richter vem à tona. Ex-virtuose que abandonou uma carreira auspiciosa como violinista, Leonora não abre mão do marido que a trai e nem do casamento aos pedaços por uma zanga qualquer. Nesse ponto, o enredo dá uma guinada algo farsesca — trata-se de um suspense, certo? —, à Adrian Lyne ou Brian de Palma, conduzindo o longa para o desfecho literalmente catártico. A condução de Rothenborg garante 105 minutos de poucas certezas e ótimas possibilidades de se exercitar o faro detetivesco que pulsa em cada um, assistindo-se a uma imensa fogueira de veleidades diabólicas queimar um circo de horrores.


Filme: Um Marido Fiel
Direção: Barbara Rothenborg
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10