Uma das melhores séries de 2023 está na Netflix Anika Molnar / Netflix

Uma das melhores séries de 2023 está na Netflix

Uma das melhores atrações de streaming no ano é a série “Transatlântico”, da Netflix. Em sete capítulos, conta-se a odisseia dos jovens que em 1940 se reuniram na cidade de Marselha, no sul da França, para salvar artistas plásticos, escritores e intelectuais europeus perseguidos pelo nazismo. A intenção era levá-los para os Estados Unidos. Aparece na tela uma galeria inacreditável de personagens: Max Ernst, André Breton, Marc Chagall, Hannah Arendt, Marcel Duchamp e Peggy Guggenheim.

Entre essas figuras históricas, as mais surpreendentes são o filósofo Walter Benjamin (1892-1940) e o economista Albert Hirschman (1915-2012), ambos alemães. Quem os vê na tela, tem pouca ideia de quem foram e da importância que tiveram. Ali surgem quase anônimos, o que efetivamente eram na época. Benjamin é o fantasmagórico personagem dos dois primeiros capítulos da série — um deles intitulado “O Anjo de História”, que é um de seus textos mais famosos. Já Albert é um dos protagonistas da trama.

Nascido em Berlim, Benjamin foi um dos membros da famosa Escola de Frankfurt, criada no período de entreguerras mundiais. Seus colegas eram marxistas heterodoxos que absorveram conceitos de psicanálise para analisar as sociedades modernas. Como disse o próprio Benjamin, era preciso agarrar a realidade pelos chifres, se ater ao mundo concreto das coisas. Ele mergulhou no teatro barroco alemão e na poesia de Charles Baudelaire para decifrar as transformações sociais e culturais do século 20.

Numa das cenas de “Transatlântico”, Benjamin explica a uma mulher do hotel a ideia de “perda da aura”. É muito interessante e até engraçado como a série joga na tela os trechos de obra benjaminiana, nas falas do personagem. As cenas enfatizam sua imagem de um sujeito melancólico, adoecido e, acertadamente, afogando a tristeza na fumaça de haxixe. Ele não sai do quarto do Hotel Splendide, em Marselha, e fica escrevendo. Sabemos hoje que ela escrevia naquele momento suas famosas “Teses Sobre a História”.

Alarme de incêndio

Um dos trechos mais emocionantes reconstituiu o que teria sido a caminhada de Benjamin de Marselha até a cidade de Port-Bou, na fronteira da França com a Espanha. Era o trajeto para chegar até Lisboa, onde se pegava o navio para os Estados Unidos. No meio de um vinhedo, um exausto Benjamin cita para um companheiro de fuga o trecho de sua famosa tese sobre o “anjo da História”. Para ele, o progresso moderno é uma máquina de gerar destruição, deixando apenas escombros e ruínas por onde passa.

“Há um quadro de Paul Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”, escreveu Benjamin, em sua nona tese sobre a História.

Ainda em 1940, a Segunda Guerra Mundial não havia mostrado seu potencial de deixar escombros. Os personagens de “Transatlântico” comentam a possibilidade de um conflito curto, restrito a Alemanha e Inglaterra. Puro engano. A França havia entregado os pontos, sendo ocupada pelos nazistas. A cidade de Marselha era um enclave, uma zona de refugiados. É evidente a relação que a série faz com o momento atual em que a Europa vive a crise dos refugiados da África e da Ásia.

O grande achado de Walter Benjamin foi acionar o alarme de incêndio. Ele nem precisou ver as bombas atômicas de Nagazaki e Hiroshima para sentenciar que o mundo entrara na fase das catástrofes. A série tem um ponto alto ao reproduzir a chegada do filósofo a Port-Bou, onde seu grupo foi barrado pela polícia. Em desespero, Benjamin tomou uma dose alta de morfina para se matar. Morreu dormindo sozinho, num quarto de hotel, e seus companheiros seguiram viagem até Lisboa no dia seguinte.

Comuna surrealista

O segundo personagem marcante de “Transatlântico” é o alemão Albert Hirschman, também berlinense, que integrou o comitê para salvar a elite cultural europeia. Na série, as figuras centrais são ele, o jornalista americano Varian Fry e a herdeira milionária Mary Jayne Gold. Estes dois últimos deixaram livros de memórias que certamente ajudaram na elaboração da obra inspiradora da série (“The Flight Portfolio”, de Julie Orringer). Hirschman deixou textos curtos sobre a experiência de 1940 no sul da França.

“Tenho vívidas lembranças de partir do porto de Banyuls, no Mediterrâneo francês, a poucos quilômetros de Cerbères, na manhã fria de e seca de 20 de dezembro de 1940; foram comigo outros dois refugiados. Fomos ajudados inicialmente por um guia que nos conduziu montanha acima por uma trilha [a mesma usada por Walter Benjamin na véspera de morrer]”, contou Albert no livro “Auto-subversão”. Ele chegou ao Estados Unidos e construiu uma longa e brilhante carreira acadêmica.

Albert também deixou um relato sobre o amigo Varian Fry: “Ele era como muitos autores que acham acertado esconder suas emoções. Tinha uma personalidade complexa, muitíssimo cativante, porém repleta de contradições. Era para mim uma fascinação infinita procurar compreendê-lo”. Na série, este jornalista americano aparece como a pessoa que organizou toda aquela estrutura de apoio e suporte em “tempos sombrios” — fundamental para salvar a vida de pessoas como Hannah Arendt.

Na série, Varian Fry aparece na figura de organizador daquela comunidade de artistas refugiados. Cenas ótimas se passam num castelo francês repleto de surrealistas, como o escritor André Breton, que era comunista. Pode-se falar até numa comuna surrealista. É desse universo que nasceu a luta contra os fascistas. Por outro lado, em “Transatlântico”, o personagem de um cônsul americano simboliza o quanto os EUA pouco se importavam com nazifascismo em 1940, pensando até nos possíveis negócios.

Albert Hirschman faz, na série, a ponte entre os artistas e os imigrantes africanos que formam o embrião da famosa Resistência Francesa. O antifascismo clássico foi obra de comunistas, socialistas, e não de liberais, se desdobrando na luta pela descolonização de países na África, que tomou impulso depois da Segunda Guerra Mundial. No final das contas, “Transatlântico” responde aos alarmes de incêndio do século 21, particularmente o caso dos refugiados que buscam uma vida nova na Europa.

Capítulo brasileiro

Após chegar ao Estados Unidos, Hirschman tornou-se um acadêmico com profundas relações com a América Latina. Foi um pensador sobre desenvolvimento econômico e manteve amizades com intelectuais brasileiros, como Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz. Conhecia profundamente os problemas do Brasil. Seu legado é o de um estudioso multidisciplinar e adepto do que chamou de “auto-subversão”, por seu desprendimento e capacidade de mudar de ideias.

A vida de Benjamin poderia ter tomado outro caminho, a partir de uma possibilidade de morar e trabalhar no Brasil. Em 1934, o crítico alemão Erich Auerbach enviou a seguinte carta para o amigo filósofo: “Há pelo menos um ano, soube que estavam procurando um professor para ensinar literatura alemã em São Paulo; logo pensei no senhor e, na época […], mandei seu endereço (dinamarquês) para as instâncias competentes – mas a coisa não deu em nada…”.

Em suas andanças, fugindo do nazismo, Walter Benjamin certamente não recebeu a carta e jamais deu uma resposta para o emprego — logo ele que viveu a penúria de não conseguir se fixar como professor. Mas se tivesse vindo para o Brasil, o filósofo alemão teria sido colega dos professores franceses que abriram a Universidade de São Paulo (USP), entre eles o antropólogo Claude Lévi-Strauss e o historiador Fernand Braudel. Restou o imenso número de leitores e leitoras especialistas de suas obras por aqui.