Por mais inventivos que consigam ser, filmes que se debruçam sobre jovens e a juventude nunca são exatamente uma surpresa, uma vez que, admitamos ou não, todos algum dia experimentamos o travo, o mel, os perigos e as beleza dos verdes anos. Judd Apatow manifesta um certo fascínio — para não dizer obsessão — ante a passagem do tempo, mormente nessa primeira fase da jornada, e em “The King of Staten Island” o diretor coloca a nu boa parte dos enigmas mais controversos de uma esfinge que não devora ninguém. Numa história singela, quase tola, e muito irregular, Apatow tira da cartola os pequenos grandes dramas com que preenche seu trabalho, preferindo uma objetividade meio destrambelhada às vezes, mas sem permitir que o caldo entorne ou para a vulgaridade ou para o automatismo.
Entre discussões levianas sobre as possíveis consequências de lidarmos com nossas chagas niilistas do modo mais cru, mostradas na franquia “Uma Noite de Crime” (2013-2021), Scott Carlin fuma maconha com os amigos e Kelsey, a aspirante a namorada, no porão da casa da mãe em Staten Island, bairro ao centro-norte de Nova York. Neste caso, as aparências não são nada enganosas, e Scott, o personagem de Pete Davidson, está mesmo à espera dos bárbaros, perdido, malgrado possa contar com o incentivo da mãe, Margie, de Marisa Tomei, e da parceira eventual vivida por Bel Powley, cuja paciência se esgota a olhos vistos. Uma das grandes iluminações do roteiro de Apatow, Davidson e Dave Sirus — com passagens autobiográficas do protagonista — é estender-se sobre o antirromance de Scott e Kelsey, de onde se podem tirar conclusões relevantes acerca da inadequação do rapaz. Numa sequência comovente em que os dois trocam inconfidências após outra noite de sexo fortuito e sem compromisso (embora se conheçam desde a quarta série e tenham ido para a cama com frequência cada vez maior), o espectador depara-se com uma das situações mais esdrúxulas da vida sexual de dois adultos, e fica meio escandalizado ao saber o motivo.
É louvável a perícia com que Apatow conduz essa subtrama a fim de, por meio dela, descobrir a essência de seu filme. A transição do Scott patologicamente egoísta, incapaz de sentir alegria ou orgulho de Claire, a irmã caçula que vai para a universidade enquanto ele continua a se iludir com pretensas chances de se tornar um tatuador — ainda que seus desenhos tenham o refinamento do traço de um menino de quatro anos e meio —, para o candidato a adulto, obrigado a digerir questões de gente grande, é, como tudo nos 137 minutos do longa, abrupta, com as providenciais idas e vindas, uma delas ancorada justamente pela personagem de Maude Apatow, filha mais velha do diretor. Duas ou três cenas depois, não há mesmo qualquer margem de retorno, e Scott terá de crescer, passando por cima do namoro de Margie e Ray, o bombeiro interpretado por um Bill Burr que se revela a melhor das excelentes surpresas de “The King of Staten Island” ao remexer velhos traumas e fomentar uma promessa de salvação para o anti-herói de Davidson.
Não se pode dizer que este seja um filme surpreendente — até porque as viradas vão se sucedendo uma a uma, todas a seu próprio tempo e da forma mais orgânica —, mas “The King of Staten Island” passa longe de ser previsível. Quem espera uma história engraçadinha se decepciona, bem como resta um gosto adstringente para aquele que espera pelo pior. Essa é uma narrativa sobre pessoas reais e comuns, e que, portanto, nunca deixa de prezar pelo realismo, o que agrada e enfurece. Igual à vida ela mesma.
Filme: The King of Staten Island
Direção: Judd Apatow
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10