A história mais surpreendente, do cinema indiano, está na Netflix e você não assistiu

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Durante uma perseguição, um escritor foge da polícia, que o acusa de ter matado a esposa. Claro que, em se tratando de cinema — e tanto mais se se está falando de cinema indiano —, nada poderia ser tão simples, e esse homem mais e mais intimidado, presa de seus próprios medos, os mesmos pavores sobre os quais estende-se em seus livros, e em torno de quem “Ittefaq” se desenrola, vai assumindo diversos papéis no filme de Abhay Chopra, um sucesso de mais cinquenta anos na versão original de Yash Chopra (1932-2012), de 1969, e como se pode questionar, o sobrenome em comum não é nenhuma coincidência, para aludir ao título. Abhay, neto de Yash, a quem presta uma dedicatória antes do início, conserva muito da força do trabalho do avô, e, por óbvio, acrescenta sua marca ao que se vê na tela, ratificando que originalidade é um predicado de família, apesar de que num e no outro caso alguns problemas se imponham.

Decerto, a melhor coisa em “Ittefaq” é a maneira como, agora, Abhay é capaz de alimentar um mistério tão óbvio ao longo de um tempo que não se compara às muito mais de duas horas pelas quais alongam-se quase todas as produções de Bollywood, mas parece bem mais elástico justamente por causa desse talento do diretor. No roteiro, boa adaptação do texto de G.R. Kamath e Akhtar-Ul-Iman, a cargo de Chopra, Shreyas Jain e Nikhil Mehrotra, percebe-se o congraçamento de habilidades a fim de se capturar rápido o interesse da audiência. A fotografia de Michal Luka, por exemplo, privilegiando o verde e o azul muitos tons abaixo do cômodo e do estético nas tantas cenas em que a vocação noir do enredo se anuncia, puxa o espectador para o meio do imbróglio que se vai desvelando à medida que se fecha o cerco sobre Vikram Sethi. O autor de romances policiais encarnado por Sidharth Malhotra passa por um aperto a que ele, um sujeito bastante familiarizado com crimes rocambolescos e criminosos diabolicamente — ainda que só em meio a sua imaginação delirante e apenas enquanto se dava seu processo criativo — jamais poderia ter se antecipado. Chopra fornece umas tantas pistas no intuito de não torturar demais a curiosidade de quem assiste, mas tudo no jeito como leva a história aponta para conclusões que se mostram açodadas a olhos destreinados. Enquanto isso, brinca com o que tem a mão precisamente para distrair o público, como o mágico que nos engana debaixo de nossos narizes com a assistente bonita. A esse propósito, além de Katherine, a mocinha morta de Kimberley Louisa McBeath, sobre a qual não se pode dizer muito, Chopra lança mão de Maya, a figura meio ambivalente de Sonakshi Sinha, que só aparece para fomentar um pouco mais de caos num misto de crime sem solução; apetites da carne que provocam reações, mas não se consumam; e, naturalmente, as disputas psicológicas entre Vikram e Dev Verma, o investigador a que um Akshaye Khanna preciso dá vida.

O saldo é positivo, mas o encerramento de “Ittefaq”, em que pese a boa condução de Abhay Chopra, a mim me parece muito barulho por nada. Meio século atrás, uma trama como essa era mesmo impactante; hoje, fica entre o ingênuo e o pretensioso, louvando-se, que se diga, a excelência técnica e o ótimo elenco. É entretenimento de qualidade, sem dúvida, mas fácil. E basta.


Filme: Ittefaq
Direção: Abhay Chopra
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Suspense/Policial
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.