Um dos filmes mais perturbadores de 2023 acaba de estrear na Netflix

Um dos filmes mais perturbadores de 2023 acaba de estrear na Netflix

Há quem defenda com e entusiasmo a tese de que existe mesmo quem nasça para padecer toda a sorte de azar, com a licença do oximoro, ao passo que uma felizarda minoria flana pelo mundo desfrutando do que o dinheiro é capaz de proporcionar de melhor. Donald Stellwag pertence ao primeiro grupo apresentado nesse verdadeiro tratado da dor de cotovelo, e “Criminoso ou Inocente: O Caso Big Mäck” dedica-se, em boa parte de sua módica hora e meia, a desfiar as agruras de um homem alvejado pela maior das vergonhas a espreitar um indivíduo pelas léguas tortas da vida. Stellwag, o Big Mäck do título, o homem grande e triste ensanduichado por absurdos, tem o ar bonachão e algo marginal que Tim Maia (1942-1998), a voz inconfundível por trás da melodia de “Azul da Cor do Mar”, também tinha — além de partilhar com o rei brasileiro do soul e do funk uma infância pobre e episódios nada gloriosos na juventude. Mas as coincidências entre esses dois rotundos e vistosos acaba aí.

A conversa por telefone entre dois amigos e uma sequência pondo a nu um campo florido no interior da Alemanha foi a maneira que Fabienne Hurst e Andreas Spinrath encontraram para amenizar o tema central de seu documentário, o perturbador estudo antropossociológico em que voltam suas atenções para Stellwag, personagem cuja desdita a um primeiro olhar assombra e comove; porém, como há mesmo entre o céu e a terra muito mais segredos do que vã filosofia do homem é capaz de especular, a partir do momento em que os diretores analisam de ainda mais perto o temperamento, a rara inteligência, o deboche arrasador, o fino sarcasmo de seu protagonista, o público se depara com a incomoda verdade de que algo de podre emana daquele reino diminuto, do tamanho de um quarto de república para ex-detentos, algo de repulsivamente podre.

Em 19 de dezembro de 1991, Stellwag, o próprio gordo sedutor, é visto entrar numa agência do Sparkassen-Finanzgruppe em Nuremberg, o banco público de poupanças da Alemanha, usando chapéu, casaco, cachecol e óculos escuros, para sacar no guichê algumas dezenas de milhares de marcos. Para isso, sacou também uma pistola inversamente proporcional ao seu tamanho, saiu rumo ao estacionamento onde uma taxista loura e pouco menos fornida que ele o aguardava, sem saber o que havia se passado, e os dois foram-se embora, como Bonnie e Clyde sem restrições alimentares. Claro que para que o enredo desse thriller policial da vida como ela é faça sentido, é urgente que a empreitada do candidato a antimocinho dê errado, mas o ponto de “Criminoso ou Inocente” é outro. Como uma dessas tramas que só mesmo a vida tem o condão de urdir, Stellwag não era bem o que começávamos a pensar a seu respeito; mesmo assim, em 25 de janeiro de 1994, depois de uma espera de quase 25 meses, começa a ser exibido como uma besta feroz diante de dois juízes e do presidente do corpo de jurados, sem saber como reagir às investidas de um tal Cornelius S., um especialista em orelhas. Ao cabo de mais três semanas, em 16 de fevereiro, é mandado para o inferno sem nunca ter visto o diabo. Por nove anos.

Este é um filme sobre quão falhos podem ser os aparelhos ideológicos do Estado em seus mecanismos de controle (ou tentativa de controle) mesmo num país dito civilizado, ainda que as quatro décadas de um regime comunista ferrenho, em que o obscurantismo científico e o sucateamento das instituições eram a tônica, ainda forjassem o espírito do tempo numa Alemanha que varrera esse espectro de sua história há mais de quatro anos. No desfecho de “Criminoso ou Inocente: O Caso Big Mäck”, quando Hurst e Spinrath elaboram na prática o conceito de doppelgänger e aproveitam para mostrar um médico acima do bem e do mal conferindo a Stellwag carta branca para também sobrepujar a lei, como recompensa pela iniquidade que o massacrara, tem-se a certeza de algo que se repete nestes tristes trópicos de Tim Maia desde muito antes que o Síndico descobrisse os sete mares: o Estado de democrático de direito é um edifício que demanda manutenção periódica. Ou rui sobre a cabeça de um Stellwag ou de qualquer outro, lá ou aqui.


Filme: Criminoso ou Inocente: O Caso Big Mäck
Direção: Fabienne Hurst e Andreas Spinrath
Ano: 2023
Gêneros: Documentário/Crime/Biografia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.