Thriller apocalíptico na Netflix te deixará paranoico como se você estivesse dentro dele

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Talvez ainda demore algum tempo, mas há de chegar o dia em que anjos descerão à Terra, mandados por Deus, para averiguar como estamos nos saindo antes de termos nosso destino selado. Será o dia em que, definitivamente, vai se saber se entre os muitos chamados sobrará mesmo uns poucos escolhidos, derivando desse movimento uma verdadeira guerra em que, inconformados, os preteridos irão se juntar contra aqueles que contam com a simpatia divina e se vai assistir a um dos muitos e intermináveis capítulos do juízo final aqui mesmo neste plano. “Legião” refina o argumento de que sobram-nos razões para que nos tenhamos como a espécie mais desventurada da Criação. Em sendo assim, é inescapável que de quando em quando a humanidade passemos por revoluções, involuções, guerras que dizimam povos irmãos, chacinas, toda sorte de barbárie que só leva à inevitável conclusão de que o homem é mesmo o lobo do homem, de que estamos condenados a cometer os mesmos erros pelos séculos dos séculos, até que nos salvem os bárbaros, trazendo alguma falsa solução com que teremos o maior prazer de nos iludir.

No filme de Scott Stewart, anjos tentam contornar a fadiga divina, envolta numa muito justificada cólera, esmerando-se na tarefa de procurar seres humanos dignos de Sua confiança e de Seu amor. A missão é árdua, mas como mostra o roteiro de Stewart e Peter Schink, nem tudo está perdido. Pai compassivo, Deus compreende e perdoa a rebeldia do homem, conforme se lê no no versículo onze do Salmo 34, de que Stewart e Schink lançam mão na abertura, mas aos poucos, também fica claro que Ele se enfurece diante de quem tripudia de Sua bondade. Os dramas mais esdrúxulos que assolam a natureza humana vão surgindo na boca de Charlie, uma jovem garçonete dando expediente numa espelunca triste à beira de uma rodovia pouco movimentada. Charlie, a anti-heroína de Adrianne Palicki, conta que a mãe lhe advertia sobre a maldade do homem e a pouca fé de Deus em nós, e possíveis juízos de valor restam sem propósito depois que se fica a conhecer a história da moça, ainda que só em seus pormenores mais superficiais. Charlie e a mãe foram abandonadas pelo pai da garota no deserto de Mojave, a sudoeste de Las Vegas, e as duas vão se entregando aos caprichos mais sórdidos da vida, no dilema existencial que traça hipóteses perversas sobre a culpa de cada um quanto à sorte que os espera. A personagem de Palicki serve para que Stewart elabore com mais vagar o argumento central, o apocalipse iminente que um anjo caído, tenta evitar. Há semelhanças pontuais entre Lúcifer, o querubim da guarda que quer ser mais que o próprio Criador do mundo, e Miguel, essa entidade que não admite que Deus dê cabo da própria obra, por mais razões que tenha. Paul Bettany encarna esse anjo sem asas, como Deus também indignado com a humanidade, mas que se compadece de seu destino cruel. É precisamente no filho de Charlie que reside o pouco alento de quem ainda vive, e nesse momento o diretor dá algumas informações adicionais a respeito dessa criança, que deverá sair do ventre da mãe dentro de um mês para ser entregue a uma família que o possa assumir, como se fosse um bem caro demais para alguém como uma humilde balconista.

No segundo para o terceiro ato, Stewart trata o enredo da batalha entre os demônios, Miguel e os seres humanos que ainda resistem mais explicitamente, deixando que essas cenas ocupem todos os cenários. Jeanette Miller na pele de Gladys Foster, o demônio encarnado numa velhinha acima de qualquer suspeita, desembarca na história a fim de intensificar a exaltação do diretor à maternidade como uma maneira de salvar o mundo, como Aronofsky em “Mãe!” (2017).


Filme: Legião
Direção: Scott Stewart
Ano: 2010
Gêneros: Ação/Terror
Nota: 8/10