O filme brutal e agonizante da Netflix que vai te fazer ter calafrios por 150 minutos Tomojiro Kamiya / Netflix

O filme brutal e agonizante da Netflix que vai te fazer ter calafrios por 150 minutos

Comparações, sobretudo, em se tratando de produtos culturais, além de quase sempre indevidas, tendem a refletir cenários enganosos. Isso posto, o japonês Sion Sono poderia ser chamado de o mais ocidental dos diretores asiáticos, uma vez que seus filmes refutam com convicção assuntos fundamentalmente idiossincrásicos de sua gente, ainda que se sinta que em momentos pontuais de sua carreira imponha-se a vontade de falar a suas raízes, ordem que ele acata de pronto. “Floresta de Sangue” talvez seja de seus filmes o que com mais habilidade lida com essa pretensa dicotomia, entre uma identidade muito particular e a intenção de ir mais longe na abordagem de temas universais a exemplo de amor, ódio, desejo, rejeição, ganância. Quem não dispõe de intimidade com o trabalho do diretor se surpreende, para o bem ou para o mal, mormente quando se lembra do que a indústria sói lançar de tempos em tempos, contemplando o terror e o suspense em medidas equivalentes ou quase, em especial no Oriente. Sono leva a sério a máxima de que a arte serve para incomodar e, dessa maneira, sabe exatamente qual o seu lugar no mundo: o mundo inteiro.

Em “Floresta de Sangue”, o diretor mantém sua ideia fixa por colegiais de uniforme que se entregam sem pudor a joguinhos sexuais regados a algum sadismo, brincadeiras aparentemente despretensiosas que não acabam bem, suicídios coletivos, a total insubordinação contra o tempo cronológico, as piadas metalinguísticas em que um lunático qualquer sempre aspira a ser um cineasta de sucesso, e um elemento cênico que a um só tempo fascina e provoca no espectador uma repulsa tão genuína quanto controversa. O filme, de 2019, redunda no que Sono sabe fazer de melhor, com providenciais inovações. Dono de um currículo vasto, com quase cinquenta produções na conta ao longo de 32 anos de carreira, o diretor de “Floresta de Sangue” está confortável em sua própria pele; a história, em muito semelhante ao que apresentou em sua estreia, com “Bicycle Sighs” (“suspiros sobre uma bicicleta”, em tradução livre [1989]), também mostra protagonistas fracassados que sonham em fazer cinema enquanto o restante da turma do ensino médio vai para a faculdade e ganha dinheiro. Esses dois expoentes da obra de Sono, em igual medida delirantes e cheios de excessos propositais, passam ao largo da mesmice e do tédio. Mais de três décadas depois, Sono compõe outra trama de um nonsense perturbador, mas nunca gratuito, que pode até se estender um pouco além do razoável, mas termina na hora certa, ratificando como poucos o lugar-comum de que o passar do tempo é relativo.

A base de “Floresta de Sangue” é Joe Murata. O antagonista vivido por Kippei Shiina, em redor de quem todo o roteiro do diretor se movimenta, fecha quase todas as portas, mas deixa uma janela entreaberta. Sono centra todo o mistério do longa nessa figura, de quem sabe-se muito pouco. Murata tanto pode ser o assassino em série que inspira o terror dos telespectadores do boletim de notícias, mas ao mesmo tempo diz ter frequentado Harvard, como um agente da CIA, a central de inteligência americana. O que o tipo a que Shiina dá vida é mesmo é um megalomaníaco compulsivo, que usa de um carisma magnético para dar azo à sua vilania e que encontra um ambiente fértil a fim de crescer sem amarras junto a um grupo de teatro amador que encena uma versão bastante inusitada de “Romeu e Julieta”.

Taeko e Mitsuko, personagens de Kyooko Hinami e Eri Kamataki, são as responsáveis pela montagem, até que uma tragédia se abate sobre a trupe. Sono aproveita o episódio para se estender, em flashback, acerca das experiências amorosas das moças, e nessa altura da história entra o componente da homossexualidade entre mulheres, que aqui se torna outra de suas compulsões. Como se trata de um dos diretores mais ardilosos da história do cinema, não se pode afirmar se o evento traumático que colhe o grupo seria uma punição pelo desvio do comportamento tido por modelo — ainda que Murata e Mitsuko engatem um namoro estapafúrdio na sequência —, mas o que importa mesmo é atentar para a evidência de que o falso encenador tira partido da fragilidade da namorada. Outro dos pulos do gato para se enganar menos com “Floresta de Sangue”.

Curiosamente, o relacionamento dos dois é estimulado pelos outros membros da companhia. Misturando o real e o meramente sugerido de um jeito que só ele mesmo sabe, Sono dá uma guinada em sua narrativa e faz de Murata seu grande personagem central. O sinistro da figura do antagonista vivido por Shiina, irretocável, não é detectado e, pior: o elenco lhe confia a produção do espetáculo, que passa a ser um filme, momento em que a história de fato se reveste de sua aura macabra. Murata torna-se quem é, valendo-se de Mitsuko, Taeko e os integrantes da equipe para satisfazer seu instinto predador, dando sequência a um massacre cruento como poucas vezes se viu no cinema. É Sono dando razão ao inconsciente coletivo, que vê na pessoa do diretor de filmes um sujeito perigosamente ambicioso, obcecado por perfeição, que passa por cima de qualquer um e faz o que tem de ser feito a fim de obter o melhor enquadramento, a luz mais reveladora, as cores mais hipnotizantes. Para ele, cinema se faz com uma câmera na mão, muitas ideias na cabeça e mil demônios soltos à roda.

Sono fala pela boca de Murata quando este alega que filmes são emoções — e muito mais que as que o personagem de Kippei Shiina enuncia como constituintes básicas da alma humana, quais sejam, alegria, raiva, felicidade e tristeza. A inteligência subversiva de seu trabalho lança o espectador numa maçaroca narrativa que muitas vezes amalgama esses quatro sentimentos e tantos outros, fomentando tal confusão que é impossível sair desse torvelinho que comove é estarrece da mesma maneira como se entra. Ombreando com mestres do naipe do John Carpenter de “Eles Vivem” (1988) ou George A. Romero (1940-2017), um dos realizadores que mais ajudou a popularizar (e refinar) o terror, Sion Sono não se incomoda em ser incômodo. Num mundo e num meio tão acostumados a só ver e ouvir o que não vá lhes ferir delicadas suscetibilidades, é um capital artístico digno de admiração.


Filme: Floresta de Sangue
Direção: Sion Sono
Ano: 2019
Gêneros: Suspense/Crime
Nota: 8/10