Indicado ao Oscar 2023, filme da Netflix, cheio de delicadeza e doçura, vai encantar o seu dia

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Existe amor ao sul da Índia, um amor diferente, absurdo para muitos, mas decerto transformador. A rotina de Bomman e Bellie, dois cuidadores de elefantes da Reserva de Tigres Mudumalai, um tanto fria mesmo sob o calor úmido da floresta que recobre os montes Nilguiris — insuportável quando, no verão, a mata parece se autoconsumir em labaredas que comprometem não só a flora —, descendo o rio Mayar, parecia fadada ao isolamento e à distância de tudo, até que destino lhes prega uma peça. Em Theppakadu, o acampamento para paquidermes sediado na Mudumalai, surge uma criança, meio calada a princípio, mas que não tardaria a encantar os dois ermitões com centenas de quilos de fofura.

Mesmo num trabalho de magros (mas acachapantes) quarenta minutos, Kartiki Gonsalves prima pela serenidade, pela delicadeza e pela doçura em “Como Cuidar de um Bebê Elefante”, registro afetivo da vocação de gente como Bomman e Bellie, nativos da etnia Kattunayakan, desde sempre habituada ao trato com os elefantes. Muito mais que um ofício, cuidar dos animais é para os Kattunayakan uma sina e, em dadas circunstâncias, uma bênção. A vida de privações e de incertezas, cercada pelo gigantismo tirânico dos Nilguiris, só cede em sua austeridade quando, de tempos em tempos, Ganesha resolve abençoar os Kattunayakans e coloca em seu caminho criaturas como Raghu, o elefante asiático a que se refere o título do filme, indicado ao Oscar 2023 de Melhor Documentário de Curta-metragem. Ao longo de 140 anos de história, poucos tiveram a chance de poder dedicar-se à criação de um bebê que encarna o próprio deus hinduísta da abundância e do intelecto. Bomman e Bellie conseguiram.

Tudo em “Como Cuidar de um Bebê Elefante” é misticismo e sutileza. A abertura, em que os enquadramentos valorizados pela edição intimista de Sanchari Das Mollick puxam o espectador para o olho da cena, passam pela selva com tranquilidade, como se estivéssemos todos numa expedição, à mercê do que nos pudesse aprontar a natureza. A fotografia da equipe liderada por Karan Thapliyal faz com que a luz da floresta resplandeça ainda mais na vegetação, no céu e nas roupas dos anfitriões, os protagonistas desse momento. Aos poucos, conhece-se um pouco da vida de Bomman e Bellie, e se sabe que não estiveram sempre juntos, como se condenados pela solidão daquele éden nas montanhas. Muito à vontade, Bellie explica que fora parar na Mudumalai meio por acaso, desnorteada com a morte — primeiro do então marido, devorado por um tigre; algum tempo depois, ela perde também a filha. Sensível e perspicaz, Gonsalves aproveita o gancho para introduzir Bomman no enredo, cruzando as duas trajetórias com a vida de Raghu, abandonado por seu grupo depois que a mãe morrera eletrocutada. O decano da reserva, há décadas imbuído pelo Departamento Florestal da lida com os elefantes mais jovens, se aproxima da nova companheira de trabalho, os dois estreitam suas dores e, claro, se apaixonam, e Raghu coroa a sorte dessa nova família — a cerimônia de casamento de Bomman e Bellie, celebrado em pleno Diwali, o festival das luzes na Índia, é semântica e visualmente forte para justificar o filme.

O pulo do gato em “Como Cuidar de um Bebê Elefante” é precisamente a simbiose, de espécies distintas e vidas assombrosamente similares, entre indivíduos à procura de seu lugar no mundo, de se encontrar, de pertencer. Bomman e Bellie foram os primeiros a atingir a façanha de criar em cativeiro não um, mas dois elefantes órfãos no sul da Índia: verificando o excelente trabalho que fizeram com Raghu, o Departamento Florestal confiou-lhes também Ammu, a pequena aliá, que mantendo a tradição das irmãs caçulas, desperta sentimentos controversos como ciúme e amor incondicional, que acaba por prevalecer. Raghu e Ammu têm hoje sete e três anos; Bomman e Bellie continuam casados.


Filme: Como Cuidar de um Bebê Elefante
Direção: Kartiki Gonsalves
Ano: 2022
Gênero: Documentário
Nota: 8/10