Jorge Amado, o artífice do realismo fantástico latino-americano

Jorge Amado, o artífice do realismo fantástico latino-americano

Ao publicar o registro literário “A Morte e Morte de Quincas Berro D’Água”, em 1959, o escritor brasileiro Jorge Amado desfere o pontapé inicial do realismo mágico nas páginas da ficção brasileira, obtendo na dramaturgia de Dias Gomes — vide a telenovela “Saramandaia”, por exemplo —, a continuação de seu imaginário prodigioso, situado no espaço geográfico da cidade de São Salvador da Bahia. Entretanto, assim como os intelectuais paulistas; leia-se: Mário e Oswald de Andrade, varreram, intencionalmente, o Machado das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, obra precursora da narrativa fantástica e arquétipo do curumim Macunaíma, para debaixo do tapete da ficção modernista, os autores da América espanhola, sobretudo Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, se esquivaram do esboço do maravilhoso criado por Jorge Amado, para autorizar, ainda que parcialmente, o ingresso da ficcionista de origem galega, Nélida Piñon, no panteão dos mestres da literatura oriunda da América Latina, a partir da segunda metade do século 20.

Ao esboçar as ideias que abarcariam a crônica referente ao autor de “Capitães de Areia”, como comprovação do que fora exposto no parágrafo introdutório, sugiro que se inicie a leitura do “baiano romântico e sensual”, como se autodefinia, por sua extraordinária narração do já clássico “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1966); e “Teresa Batista Cansada de Guerra” (1972), que, após a noite de amor alugado em alcova de bordel, no instante subsequente, restituía-se a sua castidade de nascença. De acordo com a crítica especializada, a obra de ficção mais notável seria “Jubiabá”; e Jorge Amado escrevera, ainda, dois romances sob a égide dos perfis femininos: “Gabriela, Cravo e Canela” (1958); e “Tieta do Agreste” (1977), que tampouco dialogam, diretamente, com o ideário proposto pelo Realismo mágico ou fantástico. Conquanto o poeta chileno Pablo Neruda, conforme consta em seu “Confesso que Vivi”, considerasse a saga da retirante do sertão até Ilhéus uma obra-prima da ficção, “Dona Flor…”, a começar pela genialidade do enredo posto em narração, vem ser a mais enfática e genial concepção do exotismo literário de um país ao sul do Equador, a partir da surreal e erótica ressurreição, que origina a bigamia da recatada e pudica Florípedes Guimarães.

Neste contexto, a genialidade de Jorge Amado faz vir à tona o seu mais afortunado livro, ao acenar para o realismo mágico reproduzido magistralmente em “Cem Anos de Solidão” (1967), de Gabriel García Márquez, ao ressuscitar o esplêndido Vadinho, como protagonista da mais autêntica concepção dialógica entre a modernidade vigente e o pós-realismo/naturalismo: Afinal, a puritana Dona Flor traiu ou não o farmacêutico Teodoro Madureira, com o finado esposo/amante que retorna do além ao convívio humano, em razão das recorrentes súplicas da viúva desamparada, em plena manhã de Carnaval baiano?

Cabe enfatizar que García Márquez exalta a influência da novela “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo, em sua escritura em detrimento da perspectiva de diálogo com o autor de Itabuna, elegendo a galega Nélida Piñon como representante do Boom literário latino-americano, mesmo que a bibliografia da autora de “A República dos Sonhos” não se enquadre nos padrões de escritura realística de cunho fantástico, assim como boa parte do espólio do próprio Vargas Llosa. Nisto, não obstante, há quem observe o agravante da literatura brasileira ser escrita em língua portuguesa; e, não, no idioma de Cervantes (ou Rulfo?), fato este que marginalizará a produção ficcional made in Brazil. Entretanto, eis a indagação que não quer se calar: Por que o Realismo europeu não distingue a questão idiomática, entre Flaubert, Stendhal, Dickens, Dostoiévski, Tolstói e até mesmo o primo-pobre Eça de Queiróz?

Como ainda cabe-me o recurso argumentativo do parágrafo de conclusão, enfatizo que o ficcionista Jorge Amado vem a ser o artífice do realismo fantástico latino-americano, que influenciado pela Mitologia greco-romana, pelo Surrealismo de Breton, e as “Memórias Póstumas”, de Machado de Assis, instaura o movimento libertário de emancipação estética, provindo desta Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e, enfim, Brasil.