Filme hipnotizante, com Christian Bale, que acaba de chegar à Netflix, é a principal estreia de 2023 Scott Garfield / Netflix

Filme hipnotizante, com Christian Bale, que acaba de chegar à Netflix, é a principal estreia de 2023

Chegamos ao mundo sós, estamos sós do berço ao túmulo, e os mais espertos compreendemos logo que é necessário nos empenharmos muito para fazer com que os momentos em que passamos na companhia de outras pessoas tornem-se dignos das melhores lembranças. O aspecto eminentemente paradoxal dessa evidência é que são recorrentes as situações nas quais não se percebe interesse algum de parte a parte, e a despeito da vontade atávica, ancestral e instintiva da fuga e do isolamento, persistimos no comportamento quase obsessivo de adequarmo-nos ao que esperam de nós, observando certas normas tácitas de conduta, de como apresentar-se diante dos outros, esquecendo, ainda que apenas pelo tempo em que somos forçados a abdicar de nossas solidões, dos traumas, neuroses e, claro, das deleitosas manias que fazem nosso cotidiano um pouquinho menos enfaroso. Nem tudo é só desespero, entretanto; é difícil, mas sempre pode se dar o prodígio milagroso de se deparar com alguém que assim, por acaso ou por destino, encontra na vida o mesmo prazer que nós, precisamente por se saber feito de outro barro.

A solidão é muito mais que tão somente a vontade de estar só; há passagens na vida de cada homem, célebre ou irritantemente comum, em que é de fato necessário retirar-se do mundo, ainda que metaforicamente, mesmo que pelo espaço de um instante, para realizar feitos verdadeiramente invulgares. É preciso esquecer muito para se lembrar do pouco que importa; é forçoso mergulharmos no mais fundo de nós a fim de saber para onde devemos ir. Processo que não raro se mostra doído, abandonar a ribalta, reconhecer-se pequeno, insignificante, hediondo, frágil como qualquer outra pessoa, é um exercício de autopreservação, como se, em extirpando um órgão que já não desempenha as funções para que fora criado, conseguíssemos finalmente reoxigenar o sangue e permitir que assim a vida brote outra vez.

“O Pálido Olho Azul” sobrepuja o básico da narrativa de suspense. Socorrendo-se de elementos técnicos, Scott Cooper tem o condão de ressuscitar o interesse por um dos mais ousados escritores de todos os tempos, ao passo que escapa ao óbvio escolhendo fixar-se nos detalhes que seduzem sua audiência, seja pelo olhar, seja pelo que é dito. A impecável fotografia de Masanobu Takayanagi dirime qualquer dúvida quanto as pretensões de Cooper, transportando o espectador para o cenário, tão aterrador quanto lindo, do Vale do Hudson, nas imediações da Nova York de 1830 durante um inverno rigoroso, que se encarrega de tornar o clima especialmente lúgubre.

Adaptado de um romance de Louis Bayard, o roteiro do diretor se aproveita do frio para fazer com que seus personagens circulem pelos lugares cheios dessa beleza diabólica que choca, mas também mesmeriza. Takayanagi congela o público na atmosfera de pânico, angústia e magia, deixando que Cooper se encarregue de familiarizar quem assiste com a trama caudalosa que vai se desenrolando. Na Academia Militar de West Point, então recém-inaugurada, o cadáver de um tal cadete Fry é descoberto, mas o que parecia se tratar de um suicídio logo vira o mistério de onde o diretor-roteirista parte a fim de esmiuçar outras possibilidades em seu texto ao longo de mais de duas horas. O assassino tem um fetiche entre doentio e sofisticado, mantido graças a um método cheio de perícia. Nesse momento, desembarcam no enredo o Augustus Landor de Christian Bale, um ermitão cuja filha fora viver com um namorado, e ninguém menos que Edgar Allan Poe (1809-1849), aqui na pele de um improvável jovem oficial que se dava ao luxo de escrever poesia com um diletantismo criminoso, com a licença do trocadilho.

É precisamente a experiência de Poe com os versos e a gente estranha que se investe desse maldito ofício a responsável por apontar o possível homicida, e vencida a urgência de fechar esse arco, Cooper fica livre para trabalhar as entrelinhas de seu filme, concentrando-se na amizade de Landor e o escritor. A performance mediúnica de Harry Melling arranca risos e, evidentemente, lágrimas quando seu personagem, sutil como um gato negro, aproxima-se de seu parceiro eventual, compreendendo-o e enxergando-se em sua triste figura. À medida que o crime que dá azo ao longa torna-se próximo da solução, mais se conhece um pouco da alma sofrida de um gênio enclausurado em si mesmo, cujas deambulações poéticas acerca de “Lenore” (1843) — numa linda cena com a Lea Marquis de Lucy Boynton, a mocinha possível — explicam sua angústia fundamental e o título.


Filme: O Pálido Olho Azul
Direção: Scott Cooper
Ano: 2022
Gêneros: Thriller/Mistério
Nota: 9/10