Feliz natal, estranho

Feliz natal, estranho

Doutor Elias era um médico popular viciado em livros de romance e em emergências. Certa feita, durante um plantão no dia de Natal, caminhava pelo corredor apinhado de gente quando parou para conferir mais uma vez a respiração de um grandalhão que aguardava a sua vez para fazer radiografias. Ossos quebrados, sabem como é. Enquanto checava o moribundo embriagado que dormitava, a despeito da leva de costelas partidas, foi interceptado por uma criança que puxou o seu jaleco pela parte detrás.

— Moço, o senhor é médico?

— Sim, menino. Eu sou médico.

— E o que o senhor faz aqui nesse hospital.

O médico, que era calvo feito uma bola de bilhar, que era magro feito um faquir e que devia contar cinquenta anos bem contados, respondeu assim: — Sou examinador. Eu examino as pessoas e cuido delas num primeiro momento. Por que a pergunta?

— Queria que o senhor escutasse o meu coração — disse, apontado o dedo para o meio da barriga.

— Quantos anos você tem, menino?

— Eu tenho assim — abriu a mãozinha preta espetando quatro dedos para cima.

— Nada mal. Você me parece muito esperto para quem tem só quatro anos. Por que quer que eu escute o seu coração?

— Porque ninguém nunca escutou.

— Escutou, sim. Você não se lembra porque era apenas um bebê — interrompeu a mãe, a descortinar um sorriso maroto.

— Você é novinho ainda. Tem um coração de ferro. Não se preocupe com isso — explicou o esculápio ao esfregar a mão contaminada de humanidade no cabelo pixaim do moleque.

Doutor Elias virou as costas, abriu caminho entre a turba, enfiando os prontuários médicos sob o sovaco. Caminhou dez passos, sofreu uma espécie de estalo e se perguntou por que não, por que não, por que não. Eram três horas da tarde. Ainda não tinha almoçado e, pensando bem, ainda não tinha sequer tomado um copo de água. Quando dava plantões, não sentia sede, nem fome. Mas, sentia uma pressa incrível. Mesmo com o tempo correndo em desfavor, estancou a caminhada, deu meia volta e reencontrou o menino sentado no banco ao lado da jovem mãe.

— Olá, novamente. Qual o seu nome, menino?

— Samuel.

— Muito bem, Samuel. Mudei de ideia. Vamos ouvir o que esse coraçãozinho tem para nos contar.

O guri olhou com espanto para a mãe e sorriu.

— Tire a camisa dele, por favor, mãe.

A mulher assentiu. Apesar do ciático pinçado pelas vértebras, Doutor Elias agachou em frente ao menino, enfiou as olivas do estetoscópio nos ouvidos e encostou a campânula sobre o peito imberbe.

— É friozinho, mãe — comentou.

— Não fale agora, Samuel. Preciso de silêncio para ouvir os batimentos.

O garoto mudou o semblante, ficou sério, compenetrado e arregalou os olhinhos numa enorme expectativa. Doutor Elias mudou a campânula de lugar umas três ou quatro vezes no pequeno tórax, fazendo uma avaliação real e sincera que durou cerca de um minuto.

— Pronto. Terminei.

— Ouviu alguma coisa?

O médico sorriu.

— Seu coração está perfeito. Bate firme e compassado feito um tambor.

— Um tambor?

— Sim, um tambor. Se eu pedir para você correr até o fim deste corredor e voltar, ele passará a bater acelerado como o galope de um cavalo.

— O galope de um cavalo?

— No seu caso, de um potrinho. Pocotó! Pocotó! Pocotó! Suponho que já tenha visto um cavalo galopar no campo, não?

O menino gargalhou da onomatopeia, enquanto a mãe vestia nele a camiseta. O serviço de som informou que a presença do Doutor Elias estava sendo requisitada no box número dois da emergência: mais uma tentativa malograda de suicídio no feriado de Natal.

— Preciso ir andando. Foi um prazer te conhecer, Samuel. Cuide bem do seu cavalinho. Adeus.

Num último ato de comédia, o médico deu uma derradeira espiadela no menino e seguiu pelo corredor imitando um peão a cavalgar sobre o dorso de um cavalo que só enxergava quem tinha imaginação fértil. O garoto, é claro, riu-se admirado com a cena escalafobética.

— Samuel da Silva Neto! — chamou a enfermeira, que tinha um nariz de palhaço no rosto, ao abrir a porta da ala de quimioterapia pediátrica. Sem sequer imaginar que os piores desatinos da humanidade não tinham explicação plausível, o menino se levantou, puxou a mãe pela mão e entrou na sala fria, empertigado, contente, aliviado ao confirmar que realmente tinha um coração batendo calado no seu peito de menino.