‘Bardo’ enfrenta a bestialidade da cultura e os fantasmas da América Latina Rodrigo Jardon / Netflix

‘Bardo’ enfrenta a bestialidade da cultura e os fantasmas da América Latina

Numa das melhores cenas de “Bardo — Falsa Crônica de Algumas Verdades” (2022), o diretor mexicano Alejandro González Iñárritu encena a entrevista de um presidiário com o documentarista Silvério Gama, o protagonista da trama. Um homem do povo fala “verdades” ao intelectual, no que seria um filme dentro do filme. Mais interessante de tudo: o diálogo do filme é a reprodução de uma crônica do diretor brasileiro Arnaldo Jabor, morto este ano, que inventou em 2006 uma entrevista fictícia com líder do PCC, Marcos Camacho, o Marcola.

Explicitada nos créditos finais, a citação/homenagem a Jabor é apenas um dos elementos desconcertantes do novo filme do cineasta mexicano, disponível na Netflix. Talvez apenas um diretor altamente premiado tenha hoje autorização de filmar uma história como a de “Bardo”. O filme é um mergulho na vida de um personagem que, descobrimos ao final da história, está à beira da morte na abertura. A cena inicial traz a sombra de uma pessoa (o protagonista Silvério) em sobrevoo de um deserto no México. O filme é assim narrado pelo ponto de vista da morte.

Silvério é um jornalista mexicano que se mudou para os Estados Unidos e virou um grande documentarista. Mas jamais se tornou norte-americano, e algo o continua a puxar para o México. Estamos aqui na situação bem conhecida do cinema latino-americano do brasileiro Glauber Rocha e do cubano Tomas Gutierrez Alea. E “Bardo” se esmera nas citações a outras obras. O personagem Silvério Gama carrega a exasperação das figuras do jornalista Paulo Martins, de “Terra em Transe” (1967), e do escritor Sérgio, de “Memórias do Subdesenvolvimento” (1968).

Nos anos 1960, tais personagens de Glauber e Alea se exasperavam com a revolução e as rupturas com o passado desastroso de seus países. A figura de Silvério se desespera, por sua vez, com a “modernidade cruel”, para usarmos a expressão da crítica Jean Franco, falecida recentemente. O continente que foi promessa de futuro para a humanidade, mas caiu em pleno deserto das coisas. O drama em “Bardo” é a bestialidade que tomou conta da indústria da cultura, do jornalismo e do cinema — que é o ponto central para seu filme “Birdman (Ou a Inesperada Virtude da Ignorância)” (2014).

Como em “Birdman”, a narrativa de “Bardo” não define limites para o que é sonho e o que é a realidade. Ao contrário, o filme cria de forma meticulosa uma longa vertigem, a partir da morte do protagonista, seguido de um parto inesperado de uma criança. Não se espera a lógica causa-efeito para entender a história. A cena de abertura no deserto tem sua explicação no fechamento da história. O ciclo de vida se fecha, mas fica incompleto. O que o espectador vê no filme são as angústias de Silvério pouco antes de morrer e os trechos de um documentário que ele está produzindo.

O quadro de confusão aparece ainda nos diálogos em que as pessoas falam sem abrir a boca. Trata-se de um recurso que permite entrar na cabeça dos personagens. Pode ser confuso à primeira vista, mas Iñárritu trabalhou esse formato de forma brilhante. Criou-se assim obviamente um cenário surreal, e são inúmeras as sequências surreais que envolvem os personagens e a História do México no filme. Basta ver, por exemplo, a cena impressionante do diálogo de Silvério com o espanhol Hernán Cortés (o sujeito que exterminou os astecas), citando trechos da obra de Octavio Paz.

Outra questão relevante e fundamental é a presença de axolotes em “Bardo”. É um bicho que parou no estágio de larva na evolução da natureza, é meio sapo, meio peixe e um tipo de salamandra. Não é uma coisa, nem outra, como os ornitorrincos. Mas é anfíbio, tendo a capacidade de viver dois mundos. Tal espécie só existia nos lagos da cidade do México e, graças à “modernidade cruel”, virou um pet conhecido pelo mundo afora por conta das cores exuberantes. Ou seja, o axolote é um ser mexicano por excelência, puxando Silvério constantemente de volta para seu país.

Julio Cortázar escreveu o conto “Axolotls”, no livro “Final de Jogo”. O escritor argentino criou um narrador que sempre vai a um aquário de Paris para ver aquelas criaturas de “pequenos rostos rosados astecas”. Aos poucos, a consciência do personagem se muda para dentro de um dos axolotes e passa observa os visitantes do local, entre eles o próprio narrador. Certamente, o diretor de “Bardo” viu no conto cortaziano uma das chaves para a criação de Silvério Gama, que transita por vários planos (sonho, realidade e o inevitável momento em que a morte chega).