Manoel de Barros 106 anos: filme na Netflix faz uma retrospectiva encantadora da vida do poeta que morreu em 2014 Divulgação / Lucas Barros

Manoel de Barros 106 anos: filme na Netflix faz uma retrospectiva encantadora da vida do poeta que morreu em 2014

É difícil saber o que seria do mundo sem a delicadeza da arte. O britânico Roger Scruton (1944-2020), reconhecia, por óbvio, a importância da violência das máquinas para o desenvolvimento do homem, mas reconhecia que com o seu advento o mundo perdera muito de sua ingenuidade, sua ternura e, o principal, sua beleza. Foi a partir desse argumento tão simples quanto arrebatador que Scruton construiu uma das mais sólidas carreiras na crítica de arte, vindo a ser dos intelectuais que melhor soube definir o que, afinal, representa o expediente artístico na história. A jornada do homem no mundo foi marcada desde sempre por guerras, destruição, subjugação de civilizações mais frágeis por povos hegemonicamente superiores, morte, terror; logo, nada mais natural — e necessário — que nos raros momentos em que alguma harmonia se faz presente, o gênero humano se esmere por achar a arte, a verdadeira arte, onde quer que ela esteja, inclusive (ou principalmente) na feiura, no aviltamento maior a que seres humanos podem ser sujeitados, como fez Picasso (1881-1973) ao eternizar a barbaridade da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) em Guernica (1937). Por essas e tantas outras é que a arte não pode jamais desobrigar-se da estrita observação de todos os paradigmas canônicos no que concerne ao requinte estético.

A poesia é a arte por excelência. São raros os artistas que compreendem a importância da beleza para a vida do homem comum, e poetas lidam com essa dificuldade monumental sessenta vezes por minuto, um assalto a cada segundo, sem trégua. Como traduzir valendo-se apenas da frieza das palavras — que, impotentes, conseguem apenas emular o vigor do sentimento — as emoções que borbulham sob a pele fina e ameaçam espocar ao mais delicado toque, rasgando tudo? É mister traçar estratégias, com a prudência lúcida da matemática, a fim de não deixar que nada se perca, ou, pelo contrário, permitir-se ser levado pela correnteza do fluxo do pensamento doido, que, tinhoso, mistura-se à razão e, finalmente, deságua na ansiada poesia, que nada mais é senão a afluência de realidade e sonho, muito mais este que aquela.

Uma das figuras mais reverenciadas e controversas da poesia nacional, Manoel de Barros (1916-2014) deixa-se estudar pela curiosidade do público em geral, representado pelo diretor pernambucano Pedro Cezar, um seu admirador confesso, em “Só Dez Por Cento é Mentira” (2010), retrospectiva da vida de Barros e o impacto de sua obra — popularizada tardiamente, quando já contava 72 anos, com a ajuda providencial de Millôr Fernandes (1923-2012) em sua coluna no finado “Jornal do Brasil” — no quase sempre monótono cenário cultural brasileiro. O trabalho do cuiabano, que migrou sozinho para Campo Grande aos treze anos e fincou raízes na nova terra — o estado só seria desmembrado em dia 11 de outubro de 1977 —, abriu novas sendas na apreciação da atividade poética feita no Brasil até então, justamente pelo ineditismo dos escritos do poeta, textos cujo eu-lírico é eminentemente matuto, como se ainda estivesse para descobrir o mundo a sua volta, feito o menino Manoel, meio esquisito e vagabundo, perdido num universo paralelo muito mais distante do Sul Maravilha do que hoje.

O roteiro de Cezar faz questão de resgatar essas verdades um tanto ocultas da vida de Manoel de Barros. Decerto seria muito difícil para um garoto do começo do século passado num lugar periférico, negligenciado e quase maldito, dedicar-se a coisas inúteis e pelas quais ninguém em sã consciência se interessa, como é o caso da poesia, se não tivesse contado com uma situação financeira minimamente confortável. Ao se tornar herdeiro de terras do pai, no começo dos anos 1960, Barros pôde, enfim, dar ao luxo de viver só de poesia, malgrado a agropecuária no Pantanal respirasse a plenos pulmões, impulsionada em boa medida pela ideia de Brasil Grande da ditadura militar (1964-1985). O ex-comunista passava a conhecer as delícias do capitalismo, moldando-o a seu talante para que nele coubessem suas ambições de homem de letras.

Essas contradições pautaram a vida de Barros desde o início, bem como acontece com quase todo mundo que se sabe detentor de um talento monumental e não vê a menor graça em trabalhar para pagar contas e viver sua vida besta, como dissera o também atormentado Drummond (1902-1987) em “Cidadezinha Qualquer” (1930). O modesto Barros não dissera, e nem lhe fora perguntado, que o itabirano acabou por recusar o epíteto de maior poeta vivo do Brasil porque passara a existir Manoel de Barros. O pantaneiro era um sujeito modesto. Drummond, mais ainda.

Escrever sobre o amor não é amar, bem como palavras nunca exprimem a fundo e com toda a exatidão o que são as coisas que representam: eis a alma da poesia de Barros, manifestada já no título dessa humilde cinebiografia do inbiografável Manoel de Barros. Afirmara-se certa feita o poeta sobre o que registrava nos blocos de nota que ele mesmo confeccionava que só um décimo de tudo aquilo não era verdade, e os outros noventa por cento eram invenção mesmo. Esse menino travesso da poesia brasileira, paulatinamente acanalhada até acabar por completo, captou o espírito de seu tempo como poucos, a exemplo do que também conseguiram Mallarmé (1842-1898), Baudelaire (1821-1867), Machado (1839-1908) e o mais bem-sucedido de todos nesta tarefa específica, Marcel Duchamp (1887-1968), que não por acaso era, além de poeta, artista plástico.

Manoel de Barros era um homem que dizia absurdezes, e as digo eu também. A arte é a vida que se esqueceu de acontecer. Queria eu ser inútil como Manoel de Barros.


Filme: Só Dez Por Cento é Mentira
Direção: Pedro Cezar
Ano: 2010
Gêneros: Documentário/Drama
Nota: 8/10